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"A PAIXÃO DE CRISTO"
Possível caráter anti-semita de filme de Mel Gibson vem de verso contido no Evangelho de Mateus
Discussão surge de expressão de ira sem contexto
Reuters
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Cena da Última Ceia retratada em "A Paixão de Cristo", com direção de Mel Gibson, em que uma frase dos evangelhos foi cortada por fomentar o anti-semitismo |
JACK MILES
DO "THE NEW YORK TIMES"
"A Paixão de Cristo", de Mel
Gibson, provocou uma tempestade de discussões sobre seu possível caráter anti-semita ou a idéia
de que, se não for de fato anti-semita, seja próprio para ser explorado para fins anti-semitas. A polêmica levou os produtores a cortar do filme uma frase citada nos
evangelhos que, historicamente,
fomenta o anti-semitismo.
Segue um guia ao fundo teológico e histórico do filme, para quem
não guarda uma cópia da Bíblia
(ou da Torá) no criado-mudo.
Pergunta - O que dizer da história
da perseguição cristã contra os judeus, por conta de eles serem vistos como "assassinos de Cristo"?
Resposta - A afirmação de que os
evangelhos são anti-semitas se
baseia num verso contido em Mateus 27:24-25: ""Pilatos viu que nada adiantava, mas que, ao contrário, o tumulto crescia. Fez com
que lhe trouxessem água, lavou as
mãos diante do povo e disse: "Sou
inocente do sangue deste homem
justo. Isto é lá convosco!". E todo o
povo respondeu: "Caia sobre nós
o seu sangue e sobre nossos filhos!'". O Evangelho de Mateus é
o único dos quatro evangelhos do
Novo Testamento a incluir essa
fala. Embora a modificação seja
típica do tipo de liberdade que os
roteiristas tomam ao transformar
um livro num roteiro de filme, ela
teria tido o efeito de tornar ainda
mais oficial a presunção de responsabilidade pela execução.
Entretanto, nos evangelhos, diferentes multidões judaicas têm
visões distintas de Jesus e às vezes
se confrontam publicamente. O
Evangelho de Mateus foi quase
certamente escrito por um judeu
cristão para outros judeus como
ele, contra seus adversários judeus. Imagine a raiva dos israelenses seculares diante do que os
israelenses ultra-ortodoxos descreveram como a execução de
Yitzhak Rabin e como estes
aplaudiram Ygal Amir quando ele
cometeu o assassinato. Por intensa que tenha sido essa ira, não foi
uma ira anti-semita, pois todos os
envolvidos eram judeus. A mesma coisa pode ter acontecido no
caso de Jesus. Infelizmente, porém, quando um evangelho contendo uma expressão tão forte de
ira migra para fora de seu contexto judaico original, passando para
outros contextos em que os judeus são minoria, o verso notório
adquire um potencial anti-semita
inteiramente novo e assustador.
Na minha opinião, ele conserva
esse potencial até hoje.
Pergunta - O que diz a teologia
cristã?
Resposta - Que a morte de Jesus
não é um mal que poderia ser corrigido se seus assassinos pudessem, de alguma maneira, ser levados diante da justiça. Que aqueles
que mataram Jesus, embora tenham pecado, eram instrumentos
nas mãos de Deus e que o inimigo
de Deus não era seu povo, Israel,
mas Satanás. Que foi Satanás, e
apenas ele, quem foi derrotado
quando Jesus se ergueu dos mortos: o Paraíso perdido, o Paraíso
reconquistado. Mas alguma vez
os anti-semitas se preocuparam,
de fato, com a teologia?
Pergunta - O que levou ao confronto entre Jesus e os outros judeus?
Resposta - Quando Jesus deixou
a Galiléia e começou a atrair multidões nas ruas de Jerusalém com
suas pregações apocalípticas, os
colaboradores judeus dos romanos se alarmaram, pensando em
qual poderia ser a reação romana.
Para citar o Evangelho de João:
"Que faremos? Esse homem multiplica os milagres. Se o deixarmos proceder assim, todos crerão
nele, e os romanos virão e arruinarão a nossa cidade e toda a nação." Um deles, chamado Caifás,
que era o sumo sacerdote daquele
ano, disse-lhes: "Vós não entendeis nada! Nem considerais que
vos convém que morra um só homem pelo povo e que não pereça
toda a nação'" (João 11:47-50).
A ironia desse trecho-chave é
que, deixando de lado o aspecto
implacável de sua visão, a disposição de Caifás em aquiescer com o
domínio romano era igualada pela de Jesus. Não só Jesus não era
militante -era pacifista radical, e
sua posição com relação a Roma
era escandalosamente obediente:
"Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus"
(Marcos 12:17). Imagine Moisés
dizendo "dai ao Faraó o que é do
Faraó, e a Deus o que é de Deus", e
terá alguma idéia da transformação que Jesus e seus seguidores judeus se dispunham a operar.
Em termos históricos, portanto,
Jesus pode ser visto como vítima
de um erro trágico ou de um cálculo cínico dos judeus que o denunciaram aos romanos. Mas, em
qualquer um dos casos, o primeiro e fatídico passo contra ele foi
dado não por OS JUDEUS, mas
por ALGUNS JUDEUS. Fontes judaicas e cristãs da época atestam
que Jesus tinha inimigos judeus
influentes. O que chama a atenção, porém, é que, em vista do
medo que os cristãos primitivos
sentiam da atenção romana hostil, as palavras do mais antigo sumário de fé cristã atribuem a culpa (pela morte de Jesus) ao governador romano, se é que a atribuem a alguém. Na visão de são
Pedro, os envolvidos na morte de
Jesus faziam parte do plano eterno de Deus. Falando como judeu
aos outros judeus, no primeiro
grande sermão de sua carreira,
Pedro disse: "Sei que o fizestes por
ignorância, como também os vossos chefes. Deus, porém, assim
cumpriu o que já antes anunciara
pela boca de todos os profetas:
que o seu Cristo devia padecer"
(Atos dos Apóstolos 3:17-18).
Pergunta - Será que vamos perder alguma coisa, então, se o verso
fatídico não estiver presente?
Resposta - Não, na medida que
os Evangelhos de Marcos, Lucas e
João tampouco são falhos por não
conterem o verso presente em
Mateus. De resto, espero que "A
Paixão...", que ainda não vi, não
justifique o pior que se diz sobre
ele antes de seu lançamento. Mas,
se isso acontecer, o resultado será
mais uma pena do que um perigo.
Tradução de Clara Allain
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