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"Como pode não termos um Obama?"
Milton Gonçalves diz que negros devem ser "ministros da Fazenda, da Educação", e não ter pasta para tratar só de negros
Ele critica Lula, lamenta que brancos ainda predominem em novelas e afirma que cotas não podem resolvem "questões centenárias"
Luciana Whitaker/Folha Imagem
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Milton: 'Fazer um vilão provoca mais discussões do que papéis usuais'
LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Quando foram divulgadas as
primeiras notícias de que Milton Gonçalves seria um político
corrupto na novela "A Favorita", da Globo, a bomba logo estourou em seu e-mail. O personagem, escreveram os remetentes, poderia prejudicar candidatos negros nas eleições.
"Será que o objetivo era atingir
Barack Obama?", surtou um.
Ninguém melhor do que Milton para entrar nessa polêmica.
Aos 74 anos, 43 só de Globo, o
ator passou a vida na luta por
papéis que iam além dos escravos e empregados reservados a
negros. Quase foi demitido
quando se opôs à decisão de
pintar Sérgio Cardoso de preto
para interpretar o escravo protagonista de "A Cabana do Pai
Tomás" (1969/70). Além disso,
Milton é político na vida real.
Filiado ao PMDB, foi candidato
a deputado nos anos 80 e a governador do Rio nos 90.
Romildo Rosa, seu papel em
"A Favorita", não só é corrupto
como chefe de uma família desequilibrada. A controvérsia
sobre a abordagem politicamente incorreta do núcleo negro deve crescer, uma vez que a
trama de João Emanuel Carneiro, há três semanas no ar
com 35 pontos de média, deu
sinal de subida no Ibope e bateu 40 na segunda-feira. À Folha o ator falou da celeuma, fez
críticas às TVs por terem poucos negros, às cotas, a Lula e a
políticos em geral. Leia abaixo.
FOLHA - O sr. tem a carreira marcada por conseguir papéis que vão
além dos normalmente concedidos
a negros, como escravos e empregados. Chegou a pedir a Janete Clair
um personagem "engravatado" e
acabou fazendo o médico Percival
em "Pecado Capital" (1975/76).
MILTON GONÇALVES - Sempre lutei por papéis relevantes. Há
muitos anos, na peça "A Mandrágora" [de Maquiavel], comecei fazendo um escravo e
acabei no papel que era do
[Gianfrancesco] Guarnieri. Tinha que fazer um esforço para
me convencer de que era capaz.
Queria papéis que acrescentassem algo a um processo antes
inconsciente e hoje muito
consciente: o da inserção sem
humilhação.
FOLHA - Nesse contexto, como
avalia o fato de interpretar na novela das oito um político corrupto? Os
papéis não precisam mais levantar a
bandeira do movimento negro?
MILTON - Como ator, quero fazer todos os personagens. Fazer um vilão provoca mais discussões do que papéis usuais. E
a política brasileira... Aqui no
Rio, aqueles três jovens negros,
e é bom grifar isso, da comunidade [do morro da Providência] são detidos, e o Exército os
leva a uma facção [rival de traficantes], e eles são mortos de
forma brutal. Isso é uma aberração e é política. Quem levou o
projeto Cimento não sei das
quantas para lá? Um político [o
senador Marcelo Crivella, do
PRB, autor do Cimento Social,
de reforma de casas; em nota,
na quinta-feira, o parlamentar
afirmou: "O que fiz foi unicamente apresentar e defender a
importância do projeto (...) e
garantir os recursos orçamentários necessários"]. O Exército
só foi lá porque o presidente do
país autorizou. Obviamente
não imaginava que fosse aquilo,
mas aquele que é candidato a
prefeito [Crivella] levou [o
Exército] e vai ter que assumir
a responsabilidade. Isso marca
a podridão em que foi transformada a política. Há pessoas
maravilhosas, mas a média lamentavelmente falha. Meu
personagem é um desses duendes chafurdando no lamaçal.
FOLHA - O sr. enfrentou resistência
do movimento negro em razão de
interpretar um político corrupto?
MILTON - Uma pessoa próxima,
que se notabiliza por palpites
infelizes, me mandou um e-mail: "Será que isso não vai
atrapalhar? Será que estão querendo atingir [Barack] Obama?" É um jornalista negro,
não vou falar o nome. Algumas
outras pessoas escreveram. Ficou a sensação de que seria negativo fazer um político negro
corrupto em um país onde o negro, que é metade da população, não é representado no tamanho da sua participação na
sociedade. Me questionaram se
o personagem não atrapalharia
[políticos negros] nas eleições.
Não acho, e sou ativista político. Meu lado artístico pede vilões. Vilões que algumas vezes
fiz redundaram em grandes
discussões. O fato de o cara ser
negro não quer dizer que não
possa ser desonesto, corrupto,
bandido, safado, ladrão. Pode
ser tanto quanto o branco. Se
meu personagem atrapalhar
um candidato negro é porque
não há convicção sobre ele. Romildo provoca desejo de que
haja políticos negros honestos.
FOLHA - O pesquisador e cineasta
Joel Zito Araújo demonstrou que na
história da TV a grande maioria dos
papéis concedidos a negros era de
coadjuvantes, escravos e empregados. Nos últimos anos, houve mais
negros em papéis centrais, como a
protagonista de "Da Cor do Pecado"
(2004/Taís Araújo). Ter um negro como corrupto pode significar que
chegamos a um patamar no qual a
inserção não é mais um problema?
MILTON - Continuo achando
que ainda somos muito poucos
em atividade. É só olhar na TV.
A participação do negro nas novelas não mudou quantitativamente. Em 68, tive um atrito na
Globo, quando Sérgio Cardoso
foi pintado de preto para o papel de negro em "A Cabana do
Pai Tomás". Em um país em
que a metade da população é
negra, pintar um branco para
fazer o papel de negro é aberração, um desrespeito. Fui contra
isso, o que quase me rendeu
uma demissão. E não sei se há
uma melhoria. Quando se faz
uma novela de favelas, por
exemplo, aquela figuração lá no
fundo ainda não é misturada o
suficiente para o meu gosto.
FOLHA - O sr. enfrentou muito preconceito nesses 43 anos de Globo?
MILTON - Preconceito todos sofrem, até branco, dependendo
do meio. Em "Baila Comigo"
[81], era casado com a personagem da Beatriz Lira. Ela recebeu avisos loucos: "Olha, ele é
excelente ator, mas você vai fazer a mulher dele?!". O chamado movimento negro me dizia:
"Não vai beijar na boca!". Combinamos: "Tome beijo na boca".
FOLHA - O que o sr. acha do movimento negro no Brasil?
MILTON - Já fui mais ativista.
Não renego, mas temos que
acrescentar à luta algo a mais,
para que a ação seja mais democrática. Não acho que um ministro ou secretário deva ter
cargo só para tratar de coisas de
negros. Negros devem ser ministros da Fazenda, da Educação. Como pode, nos EUA, onde
o negro é 14% da população, haver um negro candidato à Presidência, que espero que seja
eleito, com grandes chances, e
no Brasil, onde o negro é metade da população, não termos alguém assim? Fui candidato a
governador no Rio [94] porque
achei que deveria enfrentar.
Mas pessoas antes solidárias
deram cabo. O que eu queria fazer não incluía desonestidade.
FOLHA - Por suas palavras, não parece favorável às cotas para negros.
MILTON - Não sou radicalmente
contra. Quem achar que são
boas que faça uso. Mas não
acho que as cotas possam resolver questões centenárias. Não
posso apenar um branco que tirou dez na prova e dar seu lugar
a um negro que tirou cinco.
FOLHA - Encararia outra eleição?
MILTON - Nem que a vaca tussa!
Sou da época do MDB e hoje estou no diretório estadual do
PMDB do Rio, mas prefiro ser
um guerrilheiro em escaramuças. Quando há necessidade,
vou lá e dou palpite.
FOLHA - O que acha do PMDB?
MILTON - Houve degradação, a
qualidade está muito baixa.
FOLHA - Cogita trocar de partido?
MILTON - Agora não, porque está tudo a mesma porcaria.
FOLHA - O fato de Romildo falar
que passou fome é recado a Lula?
MILTON - Nada a ver. A única
coisa que me incomoda no Lula
foi uma frase que usou, que não
estudou e é presidente. Não sabe o mal que causou à nação.
FOLHA - Aprova a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura?
MILTON - Não sei... Cultura, na
minha cabeça, é a perna direita
de um país. E acho que a Cultura está meio vasqueira, devagar.
FOLHA - "A Favorita" mostra a relação conflituosa do deputado com a
imprensa. Como o sr., que fez faculdade de jornalismo, analisa a atual
relação entre imprensa e poder?
MILTON - Não há hoje ninguém
absolutamente isento. O jornal
é feito para um grupo de leitores e quer alcançar seu nível de
venda. O seu jornal, por exemplo, tem como cliente a classe
média paulista. Pode até fazer
matérias para o operariado,
mas não é seu público-alvo.
FOLHA - O repórter da novela gritou "corrupto, ladrão" em comício
de Romildo. O jornalismo partidário
é muito presente hoje no país?
MILTON - Não é função do repórter ir a um comício e chamar o cara de ladrão. Se quer falar, tem que tirar o crachá e agir
como cidadão.
FOLHA - Por outro lado, o deputado da novela veta a publicação de
reportagens que denunciam suas
falcatruas telefonando para a cúpula do jornal. Não é um tema delicado
para se tratar em uma emissora que
faz parte de um conglomerado de
comunicação tão amplo?
MILTON - Concordo em gênero,
número e grau. Mas, pai, afasta
de mim esse cálice! [risos].
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