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MÔNICA BERGAMO
Ana Ottoni/ Folha Imagem
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A atriz, caracterizada para interpretar uma personagem do filme que tem 60 anos atravessa o deserto rumo ao set de filmagem |
Dona Fernanda do deserto
Domingo, 15, era dia de descanso, mas às 6 horas Fernanda Montenegro já está
acordada, saindo para trabalhar. Ela é a estrela de "Casa de
Areia", filme dirigido por seu
genro, Andrucha Waddington,
e estrelado também por sua filha, Fernanda Torres, e que deve
ser lançado em 2005.
Fernanda usa um sapato baixo, de sola de borracha, um vestido longo, listrado e surrado e
uma mochila vermelha. Tem
pressa: foi orientada pelo diretor a chegar ao camarim da maquiagem às 6h20. A atriz vai enfrentar uma jornada de pelo
menos 12 horas de trabalho no
set, instalado nas dunas dos
Lençóis Maranhenses, o deserto
entremeado por lagoas no Estado do Maranhão. "Ela nem toma água para não ter que fazer
xixi e interromper as filmagens", conta o genro. Às vezes,
começa a filmar às 17 horas e só
termina às 5h.
Fernanda, ou "dona Fernanda", como todos da equipe de
Andrucha a chamam, sai correndo da casinha de três quartos
e uma sala em que está instalada, numa rua de areia da cidade
de Santo Amaro do Maranhão,
a localidade mais próxima das
dunas. Para chegar lá, há dois
meses, Fernanda viajou cinco
horas de avião do Rio até São
Luís, e outras cinco de carro, em
estradas com longos trechos de
terra. Santo Amaro fica a 8.000
km do Rio, onde ela vive.
No meio da filmagem, fez o
caminho de volta para tratar de
uma insolação. Uma semana
depois, lá estava ela de novo, no
meio do deserto. Quando não
trabalha, Fernanda dorme. Levou um livro, "História das Orgias", que lê quando consegue
vencer o cansaço.
Naquele domingo, viajou 30
minutos numa Pajero, em estradas de areia, até chegar à base de
trabalho, espetada no meio das
dunas dos Lençóis. Ela tem um
camarim simples, com cama de
ferro, um sofá de três lugares e
um banheiro químico, daqueles
em que não há descarga -os
Lençóis são reserva ambiental,
fiscalizada pelo Ibama. "Aqui
não pode ter sabonete, pasta de
dente, nada que seja químico",
conta Fernanda, que limpa as
mãos com álcool.
"Nossa, pareço uma louca",
diz Fernanda ao se ver num espelho. A empresária dela, Carmen Mello, quer ir logo para a
maquiagem. "Temos direito a
um café da manhã", reclama
Fernanda, colocando no prato
ovo, pão, presunto e queijo. Em
casa, só tinha tomado um chá.
Depois, a maquiagem. É o 21º
filme da carreira da atriz, e nele
ela interpreta quatro mulheres
de gerações diferentes da mesma família. "Os arquétipos da
nossa própria família baixam
todos na gente", diz ela. "Mãe,
avó, bisavó. Dos 60 anos para cá
comecei a perceber isso."
Em outubro, ela completa 75
anos. "Nos 60, chamei todos os
amigos." E agora, como se sente? "Você vê que a pista está acabando. Que a hora da chegada
está mais perto", diz. "O que você pensa que é eterno, a sua juventude, acaba. Você tem perdas familiares muito grandes."
Os olhos da atriz ficam marejados. Em sete anos, ela perdeu o
pai, Vitorino, 91, a mãe, Carmen, 86, e uma irmã. Ganhou
dois netos, Joaquim, 4, e Davi, 3.
Luiz Melodia, que no filme é
parceiro de uma das personagens de Fernanda, fala com ela
de antigos produtos, Leite de
Rosas, Alfazema, "pomada Minâncora, lembra, Melodia?".
"Lembro, claro. A gente passava
embaixo do braço...".
Para filmar no meio do deserto maranhense, a produção de
"Casa de Areia" praticamente
ergueu uma cidade paralela em
Santo Amaro. Convenceu o dono de uma pizzaria, a Maggiorasca, a montar uma "sucursal"
na cidade. Instalou geradores de
1.400 kg nas dunas. Reformou e
instalou ar-condicionado nas
quatro pousadas e alugou quartos em outras 24 casas da cidade. Trouxe figurinos e materiais
diversos em três carretas e levou
22 carros para a cidade -13 já
quebraram, por causa da dificuldade de se andar nas dunas.
A chegada da equipe do filme
foi uma espécie de "invasão estrangeira do bem": 120 pessoas
do lugar foram empregadas na
figuração, na construção de cenário e em funções como a de
motorista -com diárias de R$
10. A filmagem já precisou usar
100 jegues e 1.500 cabras, alugadas a R$ 1 cada uma. A economia da cidade se mexeu. Seis casas de comércio foram abertas e
a farmácia, que faturava R$ 300,
passou a ganhar até R$ 700 numa semana. A venda de camisinhas, inclusive, aumentou.
São 12h30 quando os atores
saem do camarim e vão até o set
de filmagem. Além do café da
manhã, às 6h, Fernanda tomou
uma água-de-coco e comeu três
bolachas. Chega ao set, é acomodada na rede de uma barraca. O sol nos Lençóis é tão forte
que até o cantor Seu Jorge, que é
negro, descascou. Venta tanto
por lá que a areia gruda no rosto, "entra na cavidade dos dentes", segundo a atriz.
Ela já não vê a hora de voltar
ao Rio. "Quando você chega
[aos Lençóis Maranhenses], os
olhos enchem d'água, a natureza é linda. Seis semanas depois,
tem a sensação de uma prisão."
Ela não tem lido revistas, não vê
TV e às vezes esquece em que
dia da semana está. "É uma colônia penal muito bonita, com
boa comida e boa hospedagem,
mas não deixa de ser uma colônia penal."
A volta de Fernanda estava
marcada para a próxima semana.
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