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CINEMA/"OLGA"
Diretor do filme imprime uma visão restrita ao casal de revolucionários, retirando todo o caráter político
Personagens deixam a história e entram na alcova
SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Como apontou Jean-Luc Godard há mais de uma década,
foi com "A Lista de Schindler", de
Steven Spielberg, que o Holocausto entrou para o cinema como um
"parque de diversões da história".
O cineasta lamentava que o
americano tivesse "reconstruído
Auschwitz em Hollywood" e com
isso tirado daqueles acontecimentos seu caráter de ignomínia,
sua excepcionalidade como horror do indizível e do irrepresentável pelo cinema. A partir de então,
o Holocausto foi banalizado em
sua brutalidade pela estética, pela
infantilização do tema, pela facilidade sentimental de esquemas
dramáticos simplificados.
A operação resultaria em estrondoso sucesso comercial. Cinqüenta anos depois do fim da Segunda Guerra, o cinema conseguia normalizar o Holocausto,
domá-lo em suas significações
mais profundas e hediondas.
Certamente pode-se encontrar
alguns pontos em comum entre
os procedimentos de Spielberg e o
que se pode ver em "Olga".
O filme conta a vida de Olga Benario, que, nos anos 20, como tantas e tantos outros, aderira ao comunismo com a esperança de
mudar o mundo, para o qual a experiência da Revolução Russa de
1917 significava uma possibilidade de superar a desigualdade social, o papel secundário e subserviente da mulher, assim como de
absorver de modo fraterno diferentes nacionalidades ou credos
(como o judaísmo), responsáveis,
justamente, por tantos conflitos.
Era, antes de tudo, uma revolucionária e foi nesse papel que conheceu Luís Carlos Prestes. Certos ou errados, esses indivíduos e
seus grupos, em seu tempo, pensavam que podiam tornar, com
sua ação, o mundo mais justo e
humano. Não limitavam seus sonhos à realização na esfera pessoal de sentimentos ou riqueza.
Tinham a pretensão de agir em
nome daqueles que necessitavam.
Nessa trajetória, apaixonam-se,
sofrem enormes reveses -pois a
revolução que tentaram fazer
eclodir no Brasil em 1935 não tinha a consistência que imaginavam, ainda que fossem muitos
aqueles que lutariam por ela.
Prestes e Olga, assim como seus
companheiros, foram presos e
duramente reprimidos pelo governo Vargas. Ao fim, Olga é deportada grávida para a Alemanha.
O que fez o filme de Jayme
Monjardim com toda essa história? Dedicou-se a preencher com
imagens o livro de Fernando Morais. Os personagens adquirem
dimensão "humana", privada:
deixam a história para entrar na
alcova. E literalmente nos é oferecido ver a representação de nosso
Cavaleiro da Esperança nu. Haveria muitas formas de fazê-lo: desvendando suas ações, seu caráter,
seus erros. Não, ele está mesmo
nu em pêlo, na cama.
Aqui até poderíamos permitir
as várias licenças poéticas que a
ficção demanda e não pede autorização. Mas qual é o sentido disso, além de esquentar a ficção, de
adicionar enormes colheradas
açucaradas ao perfil do nosso revolucionário?
Retirando todo o caráter político das ações dos personagens e
exilando-os apenas no âmbito
sentimental, esse drama, que seria
antes de tudo de dimensões humanas e/ou políticas, limita-se à
esfera individual. Não que se negue a Olga nem a Prestes o seu direito aos sentimentos, à vida amorosa e privada, mas é que para eles
não era isso o que contava. Mas
certamente é o que conta para a
bilheteria do filme.
Os personagens passam a ter
apenas a dimensão restrita que os
olhos do diretor conseguem lhes
dar: os revolucionários são apenas duros, os alemães, carrancudos e violentos, os brasileiros,
acessíveis e simpáticos. Não há
um laivo de contradição, de nuance. Reiterando nossas certezas e
clichês sobre os erros do comunismo, a desumanidade do nazismo ou a esperteza e o arbítrio de
Getúlio Vargas, o filme, por fim,
vitimiza Olga como judia, embora, na verdade, sua deportação em
1936 ligue-se antes de tudo à sua
ação como revolucionária.
Em 1984, em "Memórias do
Cárcere", Nelson Pereira dos Santos tratara do levante de 1935 por
meio dos olhos de Graciliano Ramos. Ali, numa passagem rápida,
mas muito digna, inseria a figura
de Olga Benario Prestes, que vemos no momento em que presos
e presas tentam impedir sua deportação. A cena é curta, econômica, sem transbordamentos
emocionais ou gritarias. Olga não
é especialmente bonita nem cheia
de força ou raiva. É uma estrangeira fragilizada pela situação que
está vivendo.
O que sobressai desse episódio
não é apenas uma injustiça pessoal a Olga, mas sobretudo o arbítrio e a ignomínia do Brasil, que se
aliava ao regime mais tenebroso
para perseguir seus oponentes.
Estávamos no domínio da história, e não do destino.
Pelo aspecto estético, "Olga"
lembra "Moulin Rouge". Carregado de cores, ultra-iluminado, a
música intermitente e xaroposa
correndo atrás do sentimentalismo nos gestos dos personagens.
Não seria ocioso apontar aqui a
transformação da "Internacional", música criada como um chamado à revolta proletária, em
fundo musical, como uma valsa
do adeus, quando o casal inicia a
viagem para os trópicos. Talvez
haja ali alguma ironia...
Mas não se pode negar: há na
imagem a aparência de algo grandioso, cuja pretensão, certamente, é ombrear-se com os filmes internacionais sobre nazismo e
campos de concentração. Temos,
enfim, a contribuição tupiniquim
ao Holocausto, e com todos os clichês nunca esquecidos: a Europa
é fria, por isso sempre neva nas
cenas européias, enquanto o Brasil é mesmo a terra da felicidade,
da sensualidade e do Carnaval.
Sheila Schvarzman é doutora em história pela Unicamp, historiadora do Condephaat e autora de "Humberto Mauro e
as Imagens do Brasil" (Edunesp, 2004)
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