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Tendo a guerra como ponto de partida, autora defende em novo livro que experiência real não pode ser substituída por imagens de TV
Susan Sontag vê a dor
FLÁVIO MOURA
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Em "Ensaios sobre a Fotografia", estudo clássico escrito no fim
dos anos 70, Susan Sontag defendia que a força moral das fotos de
guerra estaria neutralizada pelo
excesso de exposição. Inundados
por imagens capazes de causar indignação, teríamos perdido a capacidade de reagir.
Em seu livro mais recente,
"Diante da Dor dos Outros", a escritora norte-americana revê o argumento e defende que abstrações como essa são irrelevantes
em face do sofrimento real das vítimas. "Há uma realidade que
existe, apesar das tentativas de enfraquecer sua autoridade", diz.
Sontag, 70, falou à Folha na última terça-feira, poucas horas depois do atentado contra a sede da
ONU em Bagdá que matou o diplomata brasileiro Sérgio Vieira
de Mello e ao menos outras 22
pessoas, além de deixar mais de
cem feridas.
Lançado nesta semana, o livro é
uma reflexão a respeito das representações da guerra e do efeito
que exercem sobre quem as vê.
Sontag traça a evolução da iconografia sobre o tema, das pinturas
de Goya (1746-1828) à Guerra Civil Espanhola, das imagens do
Holocausto às fotos dos atentados
de 11 de setembro de 2001, e expõe
seu raciocínio com elegância e
erudição, exercitado em romances como "O Amante do Vulcão"
(1993) ou na coletânea de ensaios
"A Vontade Radical" (1987).
Em entrevista por telefone, de
Nova York, Sontag desdobra as
afirmações feitas no livro, nega a
semelhança entre a guerra no Iraque e a do Vietnã e se opõe aos intelectuais que aceitam tomar o sofrimento por espetáculo.
Folha - Como o atentado ao escritório da ONU em Bagdá interfere
no rumo do conflito?
Susan Sontag - Não sei. Nesse
momento, só consigo pensar no
grande brasileiro que acaba de
morrer. No período em que morei
em Sarajevo, conheci oficiais da
ONU, e Sérgio Vieira de Mello foi
um deles. Era uma pessoa muito
importante, distinta, experiente e
civilizada. Tinha uma grande carreira pela frente. Podia ter virado
secretário-geral [da ONU].
Folha - O fato de Vieira de Mello
ter sido morto por terroristas iraquianos não muda sua forma de
encarar essa guerra?
Sontag - As pessoas falam em
guerra no Iraque. Eu prefiro falar
na invasão, conquista e colonização do Iraque. Não é tão difícil para os americanos invadir e conquistar, mas é um pouco mais difícil governar, como estão vendo
agora. Vieira de Mello não era inimigo dos EUA. Pelo contrário, tinha excelentes relações com Washington. O que a resistência iraquiana está dizendo com esse assassinato é que não faz distinção
entre a ONU e os EUA. Ambos
são invasores. Só gostaria de dizer
que sinto muita dor.
Folha - Há quem já fale numa
"vietnamização" do Iraque. Faz
sentido essa expressão?
Sontag - Não. Aquela era uma
"guerra". Essa é uma conquista, e
praticamente sem oposição. No
primeiro caso, havia um governo
de fachada no sul. Agora, há um
governo que foi deposto. Não
acho que sejam comparáveis.
Quem pensa nesses termos o faz
provavelmente por otimismo,
por achar que haverá resistência
aos americanos.
Folha - Em que "Diante da Dor
dos Outros" difere de "Ensaios sobre a Fotografia"?
Sontag - Os ensaios do primeiro
livro foram escritos porque eu me
interessei por fotografia. Queria
entender por que as pessoas fotografam, questões ligadas ao sentido moral e estético da fotografia.
Já "Diante da Dor dos Outros" começou pelo ângulo da guerra. O
livro trata de uma realidade que as
pessoas acreditam conhecer pelas
fotos, mas que não conhecem.
Folha - De que modo sua experiência em Sarajevo contribuiu para essa mudança de concepção?
Sontag - A origem foram os anos
que passei em Sarajevo, entre
1993 e 1995. A cidade estava sitiada. Não havia eletricidade, água
corrente, telefone, televisão, muito menos computador. Era impossível ver as representações da
guerra, nos jornais ou na TV.
Agora, veja o exemplo do Iraque.
Diversos jornalistas com quem
convivi em Sarajevo estiveram em
Bagdá. A TV ficava ligada, viam
CNN, recebiam os jornais. Imagem e realidade, no Iraque, estavam lado a lado. Mas não quer dizer que tivessem melhor compreensão do que se passava. Pelo
contrário. Após Sarajevo, vi que
as pessoas que acompanhavam o
noticiário de perto entendiam
pouco sobre a guerra. Percebi que
não havia substituto para a experiência. Essa é a origem das reflexões do livro.
Folha - Ao criticar autores como
Guy Debord e Jean Baudrillard e
suas teorias sobre a "sociedade do
espetáculo", a senhora fala em provincianismo. Por que esse termo?
Sontag - Guy Debord, apesar de
louco, era brilhante, deu uma
grande contribuição. Quando ele
disse que a sociedade havia se
transformado em espetáculo,
achava isso um problema gravíssimo. Mas quando Baudrillard
adapta essa idéia e diz que tudo é
espetáculo, que a realidade não
existe, ele diz: "Aproveitem, essa é
a vida moderna". Ou seja, não está sendo crítico, mas conivente.
Folha - Sim, mas onde está o provincianismo?
Sontag - Essa idéia de que vivemos num mundo pós-moderno
em que nada é real, só espetáculo,
é provincianismo. Pessoas como
Baudrillard ou Noam Chomsky
ficam em seus escritórios e suas
confortáveis casas de campo e
nunca viram o horror de perto,
nunca viram a terrível condição
em que vive a maioria das pessoas
do mundo. Por isso não acredito
no que dizem.
Folha - Ainda considera que o
atentado de 11 de setembro não foi
um ato covarde?
Sontag - Não sou admiradora da
vaidade americana, nem do nacionalismo americano. Há diversas coisas de que gosto nos EUA e
diversas outras de que não gosto.
E uma delas é o comprometimento com a violência. Há muito medo e raiva. Acho que Michael
Moore tem razão quando diz, em
"Tiros em Columbine", que o país
é governado pelo medo.
DIANTE DA DOR DOS OUTROS. De:
Susan Sontag. Tradução: Rubens
Figueiredo. Editora: Companhia das
Letras. Preço: R$ 24 (112 páginas).
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