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crítica
"Livro do Chá" vê grandiosidade de "pequenas coisas"
ADRIANA LISBOA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
prática da cerimônia
do chá é "a recusa deliberada de postergar
nossa existência essencial
como ser humano, com plena consciência da dificuldade e ao mesmo tempo da importância dessa tarefa".
As palavras do mestre
Hounsai Genshitsu Sen no
posfácio de "O Livro do Chá",
de Kakuzo Okakura, podem
parecer megalomaníacas ao
leitor ocidental. Na leitura da
pequena obra-prima, porém,
fica claro o oposto: a cerimônia do chá, "chanoyu", pauta-se pela humildade, pela simplicidade e pelo respeito em
relação aos
convivas. Daí
sua grandiosidade. Para
Okakura, os
"incapazes
de sentir em
si mesmos a
pequenez
das coisas
grandiosas
tendem a ignorar nos
outros a
grandiosidade das pequenas coisas."
O "Livro
do Chá"
(1906), escrito em inglês,
chega a nós
traduzido
com elegância por Leiko
Gotoda e em cuidadosa edição. Kakuzo Okakura foi um
importante difusor da cultura japonesa no Ocidente e colaborador do Museu de Belas
Artes de Boston.
Mas o que tem de tão especial esse simples gesto de beber chá? A cerimônia, ensina
Okakura, origina-se no taoísmo e no pensamento zen, para o qual o mundano tem a
mesma importância do espiritual. Os monges zen se reuniam diante de uma imagem
e bebiam chá, dando início a
uma prática disciplinada cujos ideais estéticos remontam ao taoísmo -espécie de
"arte de estar no mundo".
Daí por diante, toda uma
complexa elaboração que envolve arquitetura, paisagismo, decoração de interiores,
utensílios, vestuário e o preparo do próprio chá (que
"não tem a arrogância do vinho, a autoconsciência do café, nem a frívola inocência do
cacau") veio orientar a cerimônia.
Uma das passagens mais
notáveis é a descrição do
aposento da "chanoyu": efêmero, feito para abrigar uma
necessidade momentânea, e
consagrado "ao culto do imperfeito, que intencionalmente deixa algo inacabado
para a imaginação completar". Isso se vê nos arranjos
florais, na escolha das pinturas, nunca excessivas, na assimetria dos utensílios de cerâmica. Para chegar ao aposento, segue-se uma aléia
que corta um pequeno jardim, planejada para romper
a ligação com o mundo exterior e dissipar os pensamentos corriqueiros.
A atitude é a de que aquele
encontro será o único de sua
vida, e dela resulta um grande apreço e um profundo respeito. Para entrar no aposento é preciso se agachar e passar por uma porta bem pequena -mesmo os guerreiros, no
passado, deviam deixar
do lado de fora as suas espadas, o que
requer profunda humildade.
Mas o que
poderia parecer mero esteticismo revela-se filosofia de vida,
numa cultura
milenar. O
prosaico gesto de se reunir com outras pessoas
para tomar
chá torna-se
um caminho
e uma influência viva, regulada pela serenidade mental.
"Aqueles entre nós que
não conhecem o segredo de
ajustar adequadamente a
própria existência neste tumultuado mar de tolos problemas que chamamos de vida estão em constante estado
de miséria, enquanto tentam
em vão parecer felizes e contentes." Cem anos passados,
as palavras de Okakura ainda
cortam como a lâmina da espada de um samurai.
ADRIANA LISBOA é escritora, autora de
"Rakushisha" (Rocco), entre outros
O LIVRO DO CHÁ
Autor: Kakuzo Okakura
Tradução: Leiko Gotoda
Editora:Estação Liberdade
Quanto: R$ 34 (136 págs.)
Avaliação: ótimo
NA INTERNET
folha.com.br/082062
leia trecho do livro
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