São Paulo, sábado, 26 de julho de 2008

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crítica

"Livro do Chá" vê grandiosidade de "pequenas coisas"

ADRIANA LISBOA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A prática da cerimônia do chá é "a recusa deliberada de postergar nossa existência essencial como ser humano, com plena consciência da dificuldade e ao mesmo tempo da importância dessa tarefa". As palavras do mestre Hounsai Genshitsu Sen no posfácio de "O Livro do Chá", de Kakuzo Okakura, podem parecer megalomaníacas ao leitor ocidental. Na leitura da pequena obra-prima, porém, fica claro o oposto: a cerimônia do chá, "chanoyu", pauta-se pela humildade, pela simplicidade e pelo respeito em relação aos convivas. Daí sua grandiosidade. Para Okakura, os "incapazes de sentir em si mesmos a pequenez das coisas grandiosas tendem a ignorar nos outros a grandiosidade das pequenas coisas." O "Livro do Chá" (1906), escrito em inglês, chega a nós traduzido com elegância por Leiko Gotoda e em cuidadosa edição. Kakuzo Okakura foi um importante difusor da cultura japonesa no Ocidente e colaborador do Museu de Belas Artes de Boston. Mas o que tem de tão especial esse simples gesto de beber chá? A cerimônia, ensina Okakura, origina-se no taoísmo e no pensamento zen, para o qual o mundano tem a mesma importância do espiritual. Os monges zen se reuniam diante de uma imagem e bebiam chá, dando início a uma prática disciplinada cujos ideais estéticos remontam ao taoísmo -espécie de "arte de estar no mundo". Daí por diante, toda uma complexa elaboração que envolve arquitetura, paisagismo, decoração de interiores, utensílios, vestuário e o preparo do próprio chá (que "não tem a arrogância do vinho, a autoconsciência do café, nem a frívola inocência do cacau") veio orientar a cerimônia. Uma das passagens mais notáveis é a descrição do aposento da "chanoyu": efêmero, feito para abrigar uma necessidade momentânea, e consagrado "ao culto do imperfeito, que intencionalmente deixa algo inacabado para a imaginação completar". Isso se vê nos arranjos florais, na escolha das pinturas, nunca excessivas, na assimetria dos utensílios de cerâmica. Para chegar ao aposento, segue-se uma aléia que corta um pequeno jardim, planejada para romper a ligação com o mundo exterior e dissipar os pensamentos corriqueiros. A atitude é a de que aquele encontro será o único de sua vida, e dela resulta um grande apreço e um profundo respeito. Para entrar no aposento é preciso se agachar e passar por uma porta bem pequena -mesmo os guerreiros, no passado, deviam deixar do lado de fora as suas espadas, o que requer profunda humildade. Mas o que poderia parecer mero esteticismo revela-se filosofia de vida, numa cultura milenar. O prosaico gesto de se reunir com outras pessoas para tomar chá torna-se um caminho e uma influência viva, regulada pela serenidade mental. "Aqueles entre nós que não conhecem o segredo de ajustar adequadamente a própria existência neste tumultuado mar de tolos problemas que chamamos de vida estão em constante estado de miséria, enquanto tentam em vão parecer felizes e contentes." Cem anos passados, as palavras de Okakura ainda cortam como a lâmina da espada de um samurai.

ADRIANA LISBOA é escritora, autora de "Rakushisha" (Rocco), entre outros

O LIVRO DO CHÁ
Autor: Kakuzo Okakura
Tradução: Leiko Gotoda
Editora:Estação Liberdade
Quanto: R$ 34 (136 págs.)
Avaliação: ótimo

NA INTERNET
folha.com.br/082062
leia trecho do livro



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