|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
AMARELO-EXCLUSÃO
Cláudio Assis e Matheus Nachtergaele falam de seus vínculos com o cinema e com "Amarelo Manga"
Filme une diretor "caótico" e ator "raro"
DA REPORTAGEM LOCAL
O amigo está morto. O amor
pretendido, inalcançável. O futuro parece ter a cara da solidão.
Quando tudo "demora em ser
tão ruim", Matheus Nachtergaele,
33, chora em "Amarelo Manga".
Chora o ator, não seu personagem Dunga, um cozinheiro homossexual obcecado em conquistar Wellington (Chico Diaz).
"Naquela cena, foi uma das únicas vezes na minha vida em que
deixei eu mesmo chorar, não o
personagem", diz Nachtergaele.
A permissão para se emocionar
diante da câmera veio da forma
como Nachtergaele encarou Dunga. "É um dos meus trabalhos
mais honestos", diz o homem que
tem seu nome no elenco de 11 longas-metragens brasileiros concluídos nos últimos seis anos. Não
quaisquer longas.
Depois de despontar como o inflexível guerrilheiro Jonas em "O
que É Isso, Companheiro?" (Bruno Barreto, 1997), ele trabalhou
com Walter Salles em "Central do
Brasil" (1998) e "O Primeiro Dia"
(1999), foi o João Grilo em "O Auto da Compadecida" (Guel Arraes, 2000) e o Sandro Cenoura
em "Cidade de Deus" (Fernando
Meirelles e Katia Lund, 2002).
"Tive a sorte grande de ter feito
filmes bastante vistos. Os bons
trabalhos têm um carisma, uma
vocação apreensível. Quando os
projetos chegam para mim, alguns se destacam, como se eles tivessem uma alma especial. Ou como se o desejo das pessoas envolvidas no projeto fosse genuíno.
Acho que tenho um bom faro para sentir o carisma do projeto."
Em "Amarelo Manga", percebeu que "certo grau de caricatura
era importante, mas que também
havia no [diretor] Cláudio [Assis]
e no filme uma busca de sinceridade muito grande. Era importante que um depoimento pessoal
estivesse cravado no Dunga".
Desespero
Em nome dessa sinceridade,
tentou "dar ao Cláudio a caricatura imaginada no roteiro e, ao mesmo tempo, encontrar brechas".
Para que as brechas? "Para exibir
um certo desespero meu com relação ao amor, uma certa desconfiança minha na ética das relações
amorosas. Tentei deixar alguns
pedaços sujos meus aparecerem."
Ao presenciar essa manobra, o
diretor de fotografia Walter Carvalho pasmou. "Vi com meus
olhos e através da câmera, perto
dele, essa entrega, essa transformação, essa oferenda que o corpo
daquele menino faz diante da câmera", diz Carvalho, para quem
observar atores é a mais cotidiana
das tarefas.
Outro dos nomes constantes na
produção brasileira atual, Carvalho é o fotógrafo de filmes tão díspares como "Carandiru", de Hector Babenco, e "Filme de Amor", a
mais recente experimentação cinematográfica de Júlio Bressane.
O espaço entre esses dois pólos é
preenchido por uma extensa lista
que inclui "Pequeno Dicionário
Amoroso" (Sandra Werneck,
1997), "Abril Despedaçado"
(Walter Salles, 2001) "Lavoura Arcaica" (Luiz Fernando Carvalho,
2001) e "Madame Satã" (Karim
Aïnouz, 2002).
Como diretor, Carvalho realizou o documentário "Janela da
Alma" (2001), em parceria com
João Jardim, e, neste momento,
dirige, junto com Sandra Werneck, o longa "Cazuza - Preciso
Dizer que te Amo", baseado na vida do cantor e compositor.
É, portanto, uma voz autorizada
a que diz: "Matheus Nachtergaele
é um ser complexo. Ele não finge
como os bons atores. Ele não veste o figurino da sequência tal e fala
corretamente o seu texto. Ele faz o
contrário. Ele se despe, fica puro
diante da câmera e, a partir daí, é
dominado pela sua própria imaginação. Um ator raro, de uma espécie em extinção".
É também com o conhecimento
de quem já fotografou novelas na
TV Globo que Carvalho estabelece a comparação: "Para ver o contrário disso [a atuação de Nachtergaele], basta ligar a TV na novela. Os meninos são bonitos, têm
os dentes todos perfeitos, os olhos
são azuis, a pele é clara, limpa e
doce, mas falta gente ali dentro".
Novelas
Das novelas, Nachtergaele até
hoje manteve distância. "Por falta
de tempo e também por medo da
obra aberta, dessa ganância por
ibope, de ficar muito tempo mergulhado numa coisa que você pode não estar gostando."
Com essa escolha, acabou realizando a proeza de se tornar um
ator popular trabalhando em cinema e teatro e aparecendo na TV
apenas em minisséries, como
"Hilda Furacão" ou "Os Maias".
Agora, prepara-se para "entrar
nesse grande abismo das novelas,
pelas mãos carinhosas de João
Emanuel Carneiro", que desenvolve especialmente para Nachtergaele um papel em futura trama das 19h na TV Globo.
Os dois tornaram-se amigos
quando participaram de "Central
do Brasil", que tem roteiro escrito
por Carneiro.
Da convivência com Cláudio
Assis durante as cinco semanas de
filmagens de "Amarelo Manga",
Nachtergaele guarda uma lembrança saudosa. "Apesar de algo
caótico que o Cláudio carrega, ou
talvez por isso, a equipe estava toda contaminada, em estado de arte. É um elogio que faço ao processo dele."
O elogio se torna mais eloquente se considerarmos que essa marca "caótica" na personalidade de
Assis já lhe valeu desconfianças
alheias sobre sua capacidade de
realizar um bom filme.
Nascido em Caruaru, interior
de Pernambucano, Assis se mudou para Recife aos 17 anos de
idade. "De certa forma, o Cláudio
é um personagem desse filme.
Um cara que saiu do interior para
o litoral em busca de algo e, no Recife, conviveu com aquele universo [da periferia], morou num hotel semelhante", diz Carvalho.
Em Recife, Assis iniciou dois
cursos universitários (economia e
comunicação social) e abandonou ambos antes de concluí-los,
por se sentir "totalmente incompatível" com a estrutura da universidade. "Eu queria fazer coisas,
e os professores não deixavam.
Eram tapados, reacionários."
Quando prossegue no raciocínio
sobre o ensino daquela época, Assis faz um volteio de pensamento
que é típico nele: "Isso é fruto da
própria estrutura. Coitados, eles
não têm culpa. E têm também. A
gente é burro quando quer".
Pancadaria
Com a universidade deixada para trás, Assis meteu-se no cinema.
"Político não quero ser jamais na
minha vida. Acho que o cinema é
uma forma de dizer alguma coisa.
Você prende as pessoas numa sala
escura, para ouvir o que você tem
a dizer. Por isso não dá pra ficar
falando só bobagem."
Trabalhou primeiro como assistente das produções que encontrou e, em seguida, dirigiu quatro
curtas: "Padre Henrique - Um
Crime Político" (1987), "Soneto
do Desmantelo Blue" (1993), "Viva o Cinema" (1996) e "Texas Hotel" (1999), este uma preparação
para o longa "Amarelo Manga".
Apresentado no Festival de Brasília, "Texas Hotel" originou o
(até aqui) mais rumoroso episódio na vida do cineasta. Indignado com um comentário depreciativo ao filme, Assis saiu nos tapas
com o autor das críticas.
Muita gente presenciou a pancadaria, mas o nome preciso do
contendor evaporou-se nas memórias. Uns citam um cineasta,
outros lembram de outro. Estariam ambos no júri daquele ano.
Assis certamente recorda o tal
nome, mas finge não lembrar. "O
cara falou mal [do filme] porque
estava irritado com outras coisas.
Veio dar em mim, e eu dei nele.
Daí adoraram. Coisa de Cláudio
Assis, que diz palavrão no palco,
que faz um filme daquele... Mas é
péssimo que se lembrem de mim
por isso. Não é bom para mim,
para o cinema, para ninguém."
Em "Amarelo Manga", o cineasta escolheu ser visto como o
homem que sussurra ao ouvido
de Dira Paes. "Outro momento
em que eu poderia aparecer é como o cabeleireiro, que pinta tudo
de amarelo. Mas não levo jeito para cabeleireiro. Aí o [roteirista]
Hilton Lacerda acabou ficando
com esse papel."
O cabra macho não se emenda.
(SILVANA ARANTES)
Texto Anterior: Cineasta se expõe em quatro questões Próximo Texto: "Sem maquiagem" Índice
|