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6ª Flip
Em "Tropa", fanáticos da justiça vão mais longe que malfeitores
Além de destacar o filme "Cronicamente Inviável", Schwarz comenta "Tropa de Elite': para o crítico, boa parte do público aprovou a tortura "estimulado pela farda'
DA REPORTAGEM LOCAL
Leia a seguir a continuação
da entrevista com Roberto
Schwarz, que comenta o interesse despertado por Machado
de Assis no Brasil e no exterior.
O crítico literário fala do relançamento de seus ensaios produzidos entre 1964 e 1978 ("O
Pai de Família") e afirma que
assistimos ao renascimento do
liberalismo ("que havia entregado os pontos em 1968").
Schwarz compara "Cidade de
Deus" e "Tropa de Elite". Para
ele, boa parte do público aprovou a tortura no filme de José
Padilha ("estimulado pela farda, pela empatia com os atores
e pela missão justiceira").
(MARCOS STRECKER)
FOLHA - Como explicar o interesse
que Machado desperta ao mesmo
tempo entre a crítica dos países
"centrais" e "periféricos"?
SCHWARZ - A consagração de
Machado nos Estados Unidos
começou na década de 1950,
quando os principais romances
dele foram traduzidos. O reconhecimento da sua grande qualidade literária se deu sem levar
em conta o Brasil ou a literatura brasileira, que pareciam não
ter importância no caso.
Na mesma época, entre nós, a
crítica dava uma virada em direção oposta. Ela começava a
descobrir a ligação profunda de
Machado com a literatura brasileira anterior e com as grandes linhas de nossa realidade. O
que é mais, estas ligações passavam a ser consideradas como
parte de sua maestria artística.
Até então elas não haviam sido
vistas e o escritor, embora muito respeitado, funcionara como
um corpo estranho e um milagre em nosso meio.
Noutros termos, armou-se
um problema. O leitor estrangeiro culto, conhecedor dos
clássicos internacionais do romance, percebe que Machado
faz parte da lista dos grandes.
Para isso, não precisa do Brasil.
Ao passo que uma parte dos leitores brasileiros, preocupada
com as nossas peculiaridades e
limitações, enxerga a força genial do escritor na profundidade com que soube configurar as
questões locais, transcendendo
o provincianismo. Ele entrava
para aquela mesma lista dos
grandes, mas por outra razão. O
conflito entre as duas leituras
tem substância histórica e merece ser discutido.
FOLHA - Como o sr. se sente com o
relançamento de "O Pai de Família"? Seguindo as suas próprias palavras, quais são os "equívocos" mais
significativos que o sr. apontaria em
"Cultura e política, 1964-1969"? Ou
os maiores acertos?
SCHWARZ - O livro está fazendo
30 anos. São ensaios escritos
entre 1964 e 1978. O tema da
modernização conservadora,
que a ditadura trouxe ao primeiro plano, está presente em
todos eles. Graças à abertura
política ulterior, uma parte das
matérias se tornou histórica,
espero que sem perder o interesse. Com modificações, outra
parte continua atual, pois ainda
vivemos na sociedade que a ditadura produziu.
Os conceitos e as imagens estão no tempo, e a sua alteração
ou refutação pelo curso das coisas pode ser tão interessante
quanto sua confirmação. Assim, por exemplo, a massa camponesa famélica de Nelson Pereira, Ruy Guerra e Glauber Rocha, intocada pelo consumo
urbano, deixou de ser um eixo
da imaginação. Noutro plano,
há a volta à vida do liberalismo,
que entregou os pontos em
1968, quando parecia esterilizado para sempre, mas adiante
se casou ao consumismo e agora vai bem obrigado, fazendo
estragos de novo tipo. Para concluir, a idéia de que a ditadura
só reprimia e não transformava
era falsa, como se verificou no
momento da abertura, quando
a esquerda quis retomar as
idéias anteriores a 64 e teve que
constatar que aquele mundo
não existia mais. Etc.
FOLHA - Em entrevista à Folha no
ano passado, o sr. apontou uma
"desigualdade social degradada"
bem representada pelo filme "Cronicamente Inviável", por "Estorvo"
ou pelo minimalismo poético de
Francisco Alvim. O sr. quer comentar?
SCHWARZ - No plano da cultura,
a abertura política não foi o que
se esperava. Sobretudo não foi
o que ela mesmo esperava. Restabelecida a democracia, as forças que haviam lutado contra a
ditadura descobriram, para sua
surpresa, que não tinham muito a dizer diante da nova situação do mundo, em que o capital
havia derrotado o trabalho de
maneira avassaladora.
De lá para cá, por mais que se
diga, o país foi governado pelo
que havia criado de melhor:
primeiro a fina flor da intelectualidade de esquerda, depois a
liderança sindical do ABC e o
PT. Não obstante, o debate intelectual seguiu morno, enquanto não se cristalizava um
sentimento novo, incômodo
em toda linha, em que entretanto o público mais adiantado
julgou reconhecer a realidade.
Nem a urbanidade de Fernando Henrique nem a determinação com que Lula levou adiante
o Bolsa Família convenceram a
imaginação dos artistas, para os
quais o espírito do período não
estava aí.
Em São Paulo, até onde vejo,
a discussão recuperou o gume
com "Cronicamente Inviável",
de Sergio Bianchi. Este mostrava uma burguesia chateada de
não viver em Nova York e revoltada com a falta de segurança em casa. Noutras palavras,
os beneficiários da situação
brasileira a achavam uma porcaria e se sentiam prejudicados. Do outro lado estavam os
trabalhadores, impregnados do
imaginário anti-social dos patrões e querendo viver como
eles, completando a degradação. Acossados pelo desemprego, pela criminalidade, pela
prostituição, pelo terror e pela
manipulação política, os pobres esperneavam como podiam, sem projeto de luta coletiva. Formando o denominador
comum aos dois campos, a disposição generalizada para o
trambique.
Para voltar à sua pergunta,
ambos os pólos da relação estão
degradados e até segunda ordem não acham inspiração regeneradora. A atual euforia, ligada à alta mundial das "commodities", vai fazer diferença?
FOLHA - Qual sua opinião sobre o
sucesso de "Tropa de Elite", especialmente como contraponto a "Cidade de Deus"?
SCHWARZ - A novidade e a revelação de "Cidade de Deus"
-mais o romance do que o filme- é o ponto de vista narrativo, interno à vida dos bandidos.
Como esta é violentíssima e
quase anônima, o leitor não se
identifica com ela, embora a veja por dentro e fique estatelado.
Também em "Tropa de Elite" o
ponto de vista é interno, mas
agora à ação da polícia. Estimulado pela farda, pela empatia
com os atores, que são astros, e
pela missão justiceira, o espectador pode se identificar à violência desvairada e aprovar inclusive a tortura. Ao que parece
é o que aconteceu com boa parte do público.
É verdade também que o espectador sem queda para os
prazeres sádicos pode encarar
os heróis com distância horrorizada, como anti-heróis. Nesse
caso, ele vê a polícia dividida
entre a corrupção e o enlouquecimento, o que não é banal e
não deixa de ser instrutivo.
Se estou bem lembrado, Eugênio Bucci observou que os
bandidos de "Cidade de Deus"
têm muito de empresários. Em
"Tropa de Elite", dependendo
do ângulo, os fanáticos da justiça vão mais longe que os piores
malfeitores. São exemplos da
desigualdade degradada, ou das
afinidades de fundo entre os
pólos sociais, pelas quais você
perguntou.
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