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Crítica/"Ungáua!"
Ruy Castro exibe "erudição do cotidiano" em crônicas
Em textos para a Folha, autor lança olhar agudo para as polêmicas do dia-a-dia
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Fácil na aparência, volátil
por natureza, de vocação camaleônica e de alta circulação, a crônica é um gênero que parece sempre escapar de definições teóricas. Seu
habitat é o jornal, onde são consumidas diariamente em quantidade muito maior do que
qualquer outro gênero literário, embora carreguem, como
estigma, um certo déficit de
prestígio, como se naturalmente lidas para o esquecimento.
São uma espécie de janela
dos fatos; pela crônica, respiramos um pouco da massa opaca
de acontecimentos e também
não nos entregamos à lógica
pura do comentário objetivo. É
uma boa conversa, com um pé
no jornalismo e outro na literatura -e entre eles, o humor de
quem vê o mundo à solta.
"Ungáua!", uma coletânea de
101 crônicas dos textos que Ruy
Castro escreve na página 2 da
Folha, duas vezes por semana,
poderia servir de material didático como demonstração do
melhor do gênero. Como dissemos, a crônica é fácil só na aparência -quase que um "soneto
da prosa", é preciso dar unidade, começo, meio e fim em poucas linhas, e passar ao leitor a
sensação de uma percepção
completa de um instante, um
tema, um foco, um olhar.
Colocar em livro o que nasceu no jornal não é para qualquer cronista. E o próprio autor, na introdução, brinca com a seriedade de seu trabalho:
"Não se iluda: é simulação."
Uma auto-ironia que, é claro,
faz parte do jogo.
O ponto de partida de Ruy
Castro é sempre o mundo dos
fatos; nele, o olhar do jornalista
pesa sempre mais que o da ficção. O grande biógrafo de Nelson Rodrigues ("O Anjo Pornográfico"), Garrincha ("Estrela
Solitária") e Carmen Miranda
("Carmen"), para ficar apenas
nesses três momentos deste
autor que conhece como poucos a cultura urbana brasileira
do século 20, não perde sua característica de observador implacável da realidade ao reduzir
o texto à angustiante brevidade
das "1777 batidas" -a extensão
máxima de sua coluna.
O fato real dá a partida, mas
da segunda frase em diante entramos de corpo e alma no humor e na leveza de quem vai
criando em pinceladas um pessoalíssimo olhar sobre caos do
Brasil e do mundo. A crônica
que dá título ao livro é exemplar de seu estilo: "Ungáua!", o
grito de Johnny Weissmuller, o
Tarzan do cinema dos anos 30,
que serve para conseguir qualquer coisa, revela-se também a
palavra mágica de Lula para resolver problemas.
Todos os assuntos -incluindo-se a falta de assunto, proverbialmente o filé-mignon do gênero- submetem-se nas mãos de Ruy Castro às leis do paradoxo, num rápido jogo de oposições que o talento do cronista
põe a nu para o leitor pensar. O
presidente americano que só
pensava em mulher (um "militante da galinhagem"), a vaia
que Julinho, ponta-direita que
substituiu Garrincha em 1959,
levou no Maracanã ("Há de ser
um craque para dobrar um estádio"), a época exata do início
da decadência do Rio ("Bom
era antes"), a reabilitação do
"Y" pela nova ortografia ("Alvíssaras!") -em todos os momentos Ruy Castro domina o
que podemos chamar de "erudição do cotidiano", essa essência do cronista maduro, cujo
olhar dá um sentido imediato
ao caos da informação.
Ao mesmo tempo, sua leveza
reserva sempre um ponta aguda para as polêmicas do dia-a-dia, sobre as quais Ruy Castro
não faz nenhuma média, o que
o coloca na melhor escola rodriguiana, no estilo e na essência, ao detonar os projetos de liberação da maconha, a propaganda de cerveja, os pais ausentes, a leniência penal. Marca
inescapável, é também, aqui e
ali passionalmente, um cronista carioca, o que lhe dá o toque
clássico da cidade que de fato
criou o gênero entre nós.
CRISTOVÃO TEZZA é escritor, autor do romance "O Filho Eterno" (Record)
UNGÁUA!
Autor: Ruy Castro
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 34 (224 págs.)
Avaliação: ótimo
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