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ENTREVISTA
LUC FERRY
Problemas privados são os problemas políticos de hoje
EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL
ESCRITOR BEST-SELLER , Luc Ferry defende
que os pensadores mais profundos, de Platão a Nietzsche, renunciaram muitas vezes
ao jargão em nome de uma filosofia mais
acessível, como seria o caso de "Aprender a Viver", seu
mais famoso livro. No recém-lançado "Família, Amo
Vocês", Ferry tenta simplificar sua teoria de que a política, esfera pública por excelência, tem muito o que
aprender com a família, esfera privada. Leia trechos
da entrevista feita por e-mail.
FOLHA - Segundo o senso comum,
a estrutura familiar é essencial para
a lógica do capitalismo e do consumo. Isso mudou com as famílias
fragmentadas, monoparentais?
LUC FERRY - Houve três eras da
família. Na Idade Média não se
casava por amor, mas para
transmissão do nome e patrimônio, "fabricar" crianças e fazer viver a exploração agrícola.
De resto, não se casava, se era
casado pela família ou pelo vilarejo. É a invenção do assalariado pelo capitalismo incipiente
que abala a situação. E vai levar
o indivíduo a se emancipar do
peso das comunidades tradicionais, por uma razão simples:
o mercado de trabalho que logo
irá se globalizar força os indivíduos a trabalhar nas grandes cidades. Os indivíduos se livram
das formas tradicionais de controle social e adquirem autonomia financeira. A jovem que no
campo casa-se à força encontra-se autônoma na cidade. Isso vai levá-la a querer não mais
se casar à força, mas por afinidade eletiva. É o nascimento do
casamento por amor. É preciso
acrescentar que, antes do casamento por amor se tornar a regra, ou quase, como é o caso de
hoje, há uma época intermediária, da família burguesa, em que
não se divorciava. Mas isso é
uma ilusão, porque o divórcio é
o avesso do casamento por
amor: se você fundamenta o laço familiar no sentimento e não
mais na economia, o fundamenta em algo que pode variar.
Paradoxalmente, as famílias
monoparentais são um resultado do casamento por amor.
FOLHA - Em sua opinião, qual tipo
de ligação existe entre as famílias
modernas: não são também determinadas pelo individualismo?
FERRY - O individualismo não
tem muito a ver com o egoísmo.
O individualismo é ligado à
emancipação em relação às tradições comunitárias. Uma mulher que hoje se recusa a se casar à força no Irã tem um comportamento "individualista",
não egoísta. E o amor, na esfera
privada, tem sido fator de ampliação do pensamento e dos
horizontes. Nunca demonstramos tanta preocupação com o
outro como nas sociedades modernas. Na Europa, passamos
nosso tempo pensando no mal
que causamos com a colonização, nos erros cometidos pela
globalização em relação aos pobres etc. Isso está ligado à história da família moderna. A humanidade moderna é ligada diretamente à história do casamento por amor. É o amor privado que fez com que o mundo
ocidental tivesse simpatia por
outras civilizações. Antes, ninguém se interessava por elas senão com o olhar do colonizador. A oposição clássica do privado e do público não reside
mais onde pensamos. Como todos temos os mesmos problemas de casamentos fracassados
ou bem-sucedidos, divórcio
etc., agora o privado não é mais
tão privado como pensávamos.
A tese do meu livro é a de que os
problemas aparentemente privados são os políticos de hoje: a
dívida pública ou o choque de
civilizações não teriam tanta
importância política se a questão por trás não fosse a do mundo que queremos deixar às nossas crianças ou, de modo mais
chique, às gerações futuras.
FOLHA - Em que medida a vida privada pode ser um modelo para o Estado e as políticas públicas?
FERRY - A sacralização da esfera privada como elo principal
do sentido da vida como se vê
hoje na Europa não representa,
como se costuma afirmar de
modo blasé, recuo individualista, mas, ao contrário, uma formidável ampliação de horizontes. Diante da valorização da intimidade, o reflexo político
mais corrente consiste em declarar, com nostalgia na voz,
que, como as instituições
"grandiosas" (Deus, pátria, a
república etc.) subsistiram por
tanto tempo, nós nos conformamos, de modo mais ou menos medíocre, com o que resta:
a família com, no máximo, um
pouco de senso humanitário e
ecológico. Acredito no oposto.
Os problemas aparentemente
individuais são coletivos. Todos temos mais ou menos os
mesmos problemas, de modo
que o individual não é o contrário do político. Como a política,
esfera pública por excelência,
pode tirar partido das revoluções que abalam seu oposto natural, a esfera privada? Como
não perder de vista questões
cruciais de economia e geopolítica, ao mesmo tempo conduzindo em escala nacional uma
política que, enfim, libera a vida
privada e ajuda os indivíduos a
superar as desigualdades que
os impedem de desabrochar?
Uma coisa é certa: quem achar
a resposta será o grande político do século!
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