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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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Instalação de Eder Santos provoca espectador com verbetes simulando o comportamento humano

A enciclopédia da BESTA HUMANA

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Para saber o que é "humilhação" na "Enciclopédia da Ignorância", instalação do artista Eder Santos, é preciso ajoelhar-se num genuflexório, aquele estrado baixo de madeira que os católicos usavam em casa para orações. A imagem do espectador ajoelhado, captada por uma câmera, funde-se com o retrato de mãe e filha num monitor de vídeo. Quem ficar cinco minutos ajoelhado na obra que será inaugurada hoje verá que o retrato move-se.
A liturgia exigida pelo verbete "humilhação" não é um capricho, segundo Santos, 43, o videoartista brasileiro mais conhecido internacionalmente, que já participou de duas Bienais. "É preciso ajoelhar-se não só para experimentar um pouquinho o que é a humilhação, mas para entrar num outro tempo, muito mais lento", diz.
Quem aceitar a sugestão do artista entrará num mundo em que o barroco mineiro e o cinema mudo de Mário Peixoto (1908-92) parecem ter sido reestilizados num laboratório de imagens da Nasa -é mais ou menos assim o universo de Santos.
A "Enciclopédia" é composta de seis verbetes: humilhação, inveja, remorso, preguiça, ciúme e vício. Cada um é apresentado num ambiente com trilha de Paulo Santos, músico do Uakti. O artista fez o projeto com o prêmio de US$ 35 mil que ganhou da Fundação Príncipe Claus, da Holanda.
Os verbetes similares aos sete pecados capitais, o genuflexório e a origem mineira do artista podem induzir que se trata de um trabalho com inclinações católicas. Nada mais equivocado, segundo o crítico holandês Tom van Vliet, 49, diretor do World Wide Video Festival, de Amsterdã, onde a instalação foi apresentada pela primeira vez, em maio.
"Religião não é a questão essencial. Os pecados capitais são metáforas de tabus contemporâneos", disse van Vliet à Folha.
Santos diz que foi criado num ambiente católico, frequenta procissões desde a infância em Ouro Preto (MG), onde viu pela primeira vez as imagens de santos com cabelos humanos que o assombram até hoje, e sabe que não dá para escapar dessa vivência. Mas a "Enciclopédia", segundo ele, busca algo muito mais animal: "A idéia era dar definições para coisas primitivas, essa coisa animal que aparece em todo mundo, que você não controla por mais sofisticado que possa ser".
Não espere definições muito literais dos verbetes. O que trata do remorso, por exemplo, mostra imagens de uma hera, a planta trepadeira, ora verde, ora vermelha, projetada sobre um bloco bruto de granito. Imagens antigas dos familiares de Santos, encostados num Fusca vermelho, são intercaladas. O da preguiça mostra uma gota numa pia (é imagem projetada, mas o realismo é tamanho que a tentação é tocá-la).
No verbete mais literal, o do vício, um casal rola nu sobre um pó branco. Poderia ser uma mera ilustração sobre os males da cocaína não fosse o mundo que Santos extrai do pó branco; o movimento dos corpos forma uma espécie de baixo relevo, uma versão eletrônica dos frisos gregos que adornavam o topo dos templos.
A coisa mais rara é encontrar uma imagem pura na "Enciclopédia" de Santos. Quase todas são fundidas, colorizadas, processadas, distorcidas, com todos os erros e ruídos incorporados, num acúmulo que lembra o procedimento do barroco.
Arlindo Machado, professor de comunicação da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) e da USP, já escreveu que "Santos ataca em seus vídeos justamente a perda de vitalidade das imagens, sua redução a clichês gastos pelo abuso da repetição".
O artista credita às montanhas de Minas esse seu olhar. "A montanha é como o cinema. Você consegue ver todas as texturas, a profundidade, todas as sombras."
No próximo projeto de Santos, um filme chamado "Blue Desert", ele quer narrar a importância da experiência, não das imagens (seu primeiro filme, "Enredando as Pessoas", é de 1995). No roteiro, que está escrevendo com uma bolsa que ganhou da Vitae, ele conta a história de um homem que sonha conhecer o deserto, mas fica paralisado pelo medo. Resolve o impasse com um robô que vai até lá e transmite imagens mostrando que a areia, as montanhas, o horizonte é azul. O homem vê tudo, mas não entende nada. Só aí ele percebe que sonhos e experiências são indivisíveis.



ENCICLOPÉDIA DA IGNORÂNCIA. De: Eder Santos. Quando: hoje, às 19h; de ter. a sáb., das 11h às 19h; até 11/10. Onde: galeria Brito Cimino (r. Gomes de Carvalho, 842, Vila Olímpia, região sul, tel. 0/xx/11/3842-0635). Quanto: entrada franca.


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