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Cuba recebe Satyros com mimos e regras
Em Havana para encenar "Liz", grupo se encanta com mojitos e "cultura diferente", mas é impedido por militar de entrar em cozinha
Quartos sem ar-condicionado e sob vigilância dividem companhia paulistana, que não pode fazer comida para evitar "incidente diplomático"
AUDREY FURLANETO
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA
Os atores Fábio Penna e Cléo
De Páris estão sentados num
sofá vermelho de veludo. Uma
cortina de cetim carmim balança com o vento, forte naquela
manhã da capital de Cuba. "Governar é castigar. Governar é
cumprir um castigo", ela diz,
soltando o corpo como quem se
cansou do trono de rainha.
Cléo, de fato, se prepara para
assumir o cargo na peça "Liz",
que o grupo Os Satyros apresentou em Havana a partir do
dia 20 -a turnê acabava ontem.
O "cenário" do estudo do texto,
que lembra o de uma novela
ambientada na Bahia, é o número 658 da calle Línea, a 20
minutos do centro da cidade.
O restante do elenco da companhia -que tem sede na praça
Roosevelt, em São Paulo- está
hospedado longe dali. Os demais 11 integrantes da comitiva
ficam na casa de visitas do Conselho Nacional de Artes Cênicas, cedida pelo Ministério da
Cultura de Cuba, que convidou
os Satyros para a temporada.
A dupla de atores desistiu da
hospedagem oficial ao ver as
instalações: o grupo se dividiria
em quartos com quatro beliches cada um, sem ar-condicionado, sob a vigilância de um tenente-coronel reformado.
Os Satyros já se apresentaram em países como Alemanha, Ucrânia e Rússia. Aceitaram o convite para ir a Cuba por dois motivos: têm no elenco a transexual Phedra D. Cordoba, que deixou Havana há 54
anos, e receberam
o pedido do cubano Reinaldo
Montero. Espectador de peças
do grupo, ele queria ver seu texto "Liz" - vencedor do prêmio
Fray Luis de León, na Espanha- adaptado ao teatro.
Já no desembarque da trupe
no aeroporto de Havana, duas
funcionárias do ministério
aguardam para a ida à casa. Um
ônibus -com penduricalhos no
pára-brisa, como ursinhos de
pelúcia e flores de plástico- fará o trajeto, de 15 minutos.
Na chegada, a repórter, que
viajou a convite do grupo, ouve
a pergunta: "Es periodista?".
Após a resposta afirmativa, a
negativa cubana: não poderá
entrar na hospedagem, porque
não poderá descrevê-la no jornal. Por 40 minutos, terá de esperar, dentro do ônibus, até
que se decida seu destino -a
casa da rua Línea, para onde
também vão, mas por escolha,
Cléo De Páris e Fábio Penna.
Entrada proibida
A primeira noite é cercada de
mimos: Montero leva o grupo a
Habana Vieja, onde degustam
mojitos, cerveja Bucanero e o
célebre rum cubano. Na segunda-feira, dia 16, começam as, digamos, peculiaridades.
O almoço da casa oficial não
agrada muito -arroz com frango, comum nos paladares (casas de família que recebem turistas para refeições). Rodolfo
Garcia Vázquez, diretor da peça, decide cozinhar. "Não pode!
Gente, se eu entrar na cozinha,
posso criar um incidente diplomático", relata, rindo, aos amigos, que ensaiavam uma vaquinha para as compras. Quem deu a notícia foi o militar vigia
da casa, Armando. "Ele é uma
figura incrível! Gentil, mas tem
suas regras", avalia, otimista.
O documentarista Evaldo
Mocarzel, que realiza um vídeo
sobre o grupo, chega mais tarde
à casa e serve-se do almoço -já
frio- com a atriz Silvanah Santos. "Ela passou mal! Estava
fria a comida! Pedi para esquentar, e o Armando não deixou entrar na cozinha", lamentava ele à mesa do bar, onde quase todos atacavam hamburguesas -pão de leite com um
"tapa" de mostarda, hambúrguer, tomate e queijo (a dois
CUCs, os pesos cubanos só para
turistas, cerca de R$ 3,40).
"Eu não podia entrar na cozinha porque podia ser um espião da CIA [agência de inteligência americana]. Pode? Falei para ele: "Quando você for ao
Brasil, vou servir comida fria!'"
As agruras da casa, entretanto, são questão de tempo. "É
uma cultura diferente da nossa,
mas é muito lindo", diz o ator
Ivam Cabral. "Os cubanos têm
uma coleção de sentimentos",
avalia Penna, numa das noites
de estudos longe da casa oficial.
Os ensaios, de segunda a sexta, dia 20, são na sala Adolfo
Llauradó, importante espaço
do teatro experimental cubano.
O primeiro lugar oferecido para
o trabalho dá de frente para a
ruidosa calle Línea. Cogitam
mudar para a hospedagem do
ministério. Mas não: "Lá não é
permitido tirar os móveis do lugar", avisa Vázquez. Conseguem, então, a sala principal (a
mesma da temporada em Havana), com ar-condicionado,
sem água nos banheiros.
"Os artistas devem ser tratados como o que são: servos!",
sussurra no palco a protagonista, a rainha Elizabeth, a "usurpadora e caprichosa" Liz, que,
em sua "ilha degradada" (não
Cuba, mas a Inglaterra), decapita desafetos e morre solitária.
A jornalista AUDREY FURLANETO viajou a convite do grupo Os Satyros.
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