São Paulo, domingo, 29 de junho de 2008

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Cuba recebe Satyros com mimos e regras

Em Havana para encenar "Liz", grupo se encanta com mojitos e "cultura diferente", mas é impedido por militar de entrar em cozinha

Quartos sem ar-condicionado e sob vigilância dividem companhia paulistana, que não pode fazer comida para evitar "incidente diplomático"

AUDREY FURLANETO
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA

Os atores Fábio Penna e Cléo De Páris estão sentados num sofá vermelho de veludo. Uma cortina de cetim carmim balança com o vento, forte naquela manhã da capital de Cuba. "Governar é castigar. Governar é cumprir um castigo", ela diz, soltando o corpo como quem se cansou do trono de rainha.
Cléo, de fato, se prepara para assumir o cargo na peça "Liz", que o grupo Os Satyros apresentou em Havana a partir do dia 20 -a turnê acabava ontem. O "cenário" do estudo do texto, que lembra o de uma novela ambientada na Bahia, é o número 658 da calle Línea, a 20 minutos do centro da cidade.
O restante do elenco da companhia -que tem sede na praça Roosevelt, em São Paulo- está hospedado longe dali. Os demais 11 integrantes da comitiva ficam na casa de visitas do Conselho Nacional de Artes Cênicas, cedida pelo Ministério da Cultura de Cuba, que convidou os Satyros para a temporada. A dupla de atores desistiu da hospedagem oficial ao ver as instalações: o grupo se dividiria em quartos com quatro beliches cada um, sem ar-condicionado, sob a vigilância de um tenente-coronel reformado.
Os Satyros já se apresentaram em países como Alemanha, Ucrânia e Rússia. Aceitaram o convite para ir a Cuba por dois motivos: têm no elenco a transexual Phedra D. Cordoba, que deixou Havana há 54 anos, e receberam o pedido do cubano Reinaldo Montero. Espectador de peças do grupo, ele queria ver seu texto "Liz" - vencedor do prêmio Fray Luis de León, na Espanha- adaptado ao teatro.
Já no desembarque da trupe no aeroporto de Havana, duas funcionárias do ministério aguardam para a ida à casa. Um ônibus -com penduricalhos no pára-brisa, como ursinhos de pelúcia e flores de plástico- fará o trajeto, de 15 minutos. Na chegada, a repórter, que viajou a convite do grupo, ouve a pergunta: "Es periodista?".
Após a resposta afirmativa, a negativa cubana: não poderá entrar na hospedagem, porque não poderá descrevê-la no jornal. Por 40 minutos, terá de esperar, dentro do ônibus, até que se decida seu destino -a casa da rua Línea, para onde também vão, mas por escolha, Cléo De Páris e Fábio Penna.

Entrada proibida
A primeira noite é cercada de mimos: Montero leva o grupo a Habana Vieja, onde degustam mojitos, cerveja Bucanero e o célebre rum cubano. Na segunda-feira, dia 16, começam as, digamos, peculiaridades.
O almoço da casa oficial não agrada muito -arroz com frango, comum nos paladares (casas de família que recebem turistas para refeições). Rodolfo Garcia Vázquez, diretor da peça, decide cozinhar. "Não pode! Gente, se eu entrar na cozinha, posso criar um incidente diplomático", relata, rindo, aos amigos, que ensaiavam uma vaquinha para as compras. Quem deu a notícia foi o militar vigia da casa, Armando. "Ele é uma figura incrível! Gentil, mas tem suas regras", avalia, otimista.
O documentarista Evaldo Mocarzel, que realiza um vídeo sobre o grupo, chega mais tarde à casa e serve-se do almoço -já frio- com a atriz Silvanah Santos. "Ela passou mal! Estava fria a comida! Pedi para esquentar, e o Armando não deixou entrar na cozinha", lamentava ele à mesa do bar, onde quase todos atacavam hamburguesas -pão de leite com um "tapa" de mostarda, hambúrguer, tomate e queijo (a dois CUCs, os pesos cubanos só para turistas, cerca de R$ 3,40). "Eu não podia entrar na cozinha porque podia ser um espião da CIA [agência de inteligência americana]. Pode? Falei para ele: "Quando você for ao Brasil, vou servir comida fria!'"
As agruras da casa, entretanto, são questão de tempo. "É uma cultura diferente da nossa, mas é muito lindo", diz o ator Ivam Cabral. "Os cubanos têm uma coleção de sentimentos", avalia Penna, numa das noites de estudos longe da casa oficial. Os ensaios, de segunda a sexta, dia 20, são na sala Adolfo Llauradó, importante espaço do teatro experimental cubano.
O primeiro lugar oferecido para o trabalho dá de frente para a ruidosa calle Línea. Cogitam mudar para a hospedagem do ministério. Mas não: "Lá não é permitido tirar os móveis do lugar", avisa Vázquez. Conseguem, então, a sala principal (a mesma da temporada em Havana), com ar-condicionado, sem água nos banheiros. "Os artistas devem ser tratados como o que são: servos!", sussurra no palco a protagonista, a rainha Elizabeth, a "usurpadora e caprichosa" Liz, que, em sua "ilha degradada" (não Cuba, mas a Inglaterra), decapita desafetos e morre solitária.


A jornalista AUDREY FURLANETO viajou a convite do grupo Os Satyros.


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