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+ cinema
O diretor japonês fala da influência dos filmes mudos e do teatro bunraku em
seu novo trabalho, "Dolls", que será exibido em São Paulo no próximo sábado
Histórias de marionetes humanas
Jean-Michel Frodon
do "Le Monde"
Dolls" [Bonecas], do cineasta japonês Takeshi
Kitano, apresenta três contos cruéis e sentimentais entrelaçados, inspirados na arte tradicional do bunraku. Ao lado do no e do kabuki,
o bunraku, cuja origem remonta ao século 16, é a terceira grande arte cênica especificamente japonesa. Cada
marionete é acionada por três homens, visíveis para o
público, e o sucesso das peças depende da sincronização entre os marionetistas, o narrador e a música.
No início de "Dolls" [que será exibido em SP no Centro
Cultural Banco do Brasil (tel. 0/xx/11/3113-3651), no sábado, às 19h] é apresentada uma peça de Monzaemon
Chikamatsu (1653-1724), chamado de "Shakespeare japonês". Como muitas de suas obras, ela evoca o "shinju", o suicídio entre amantes, que foi uma forma de protesto "romântico" contra a ordem social.
Na entrevista a seguir, Kitano explica o trabalho específico com as cores e com a narrativa em "Dolls".
"Dolls" se situa, completamente, sob o signo do bunraku. O que isso representa para o sr.?
Minha avó era uma intérprete dessa arte, era ao mesmo tempo narradora e música, tocava "samisen"
[instrumento de cordas semelhante ao banjo]. Ela
ensaiava em casa, e eu cresci nesse ambiente -ou,
para ser exato, no de uma outra forma de teatro de
marionetes, o "musume gidaru", semelhante, mas
diferente, dessa utilizada no filme.
Mas por que recorrer particularmente a essa arte para
seu filme?
"Dolls" é um filme sobre o espetáculo. Tive a idéia de
um sistema de narrativa em que as histórias, contadas pelas marionetes, ocorreriam com seres humanos, que seriam outras marionetes.
Esse esquema também se aproxima
muito do cinema mudo, no tempo
em que havia músicos e um narrador
na sala para contar ou inventar o que
víamos na tela -no Japão daquela
época, o "banshi" contava para o público com grande liberdade o que as
imagens silenciosas lhe inspiravam.
Na origem do filme também há o desejo
de contar uma história específica?
Sim, o roteiro nasceu do desejo de contar uma história entre um homem e uma mulher, um tema que
pode parecer banal, mas que abordei muito pouco
no cinema até hoje. Mas meu ponto de partida era ao
mesmo tempo romântico e plástico: assim como esse tema, eu queria cores, as cores das quatro estações. Depois cruzei elementos dramáticos emprestados do bunraku e do kabuki para construir esse roteiro. A história do admirador que fica cego é emprestada de Tanizaki [um dos grandes nomes da literatura japonesa no século 20]. Originalmente as marionetes tinham apenas um papel simbólico. Foi trabalhando nos figurinos com o costureiro Yamamoto
que decidimos ir nessa direção não-realista, como se
o comportamento e a aparência das personagens
saíssem do imaginário particular que teriam as marionetes, as que contam as histórias.
Como foi o relacionamento com Yamamoto?
Não foi fácil. Tive a sensação de que ele queria usar
meu filme para organizar um desfile de moda. Eu
reivindico o filme como ele é, afinal, mas no plano visual ele é em parte resultado de sua influência.
O resultado é muito elaborado plasticamente.
Tentei fazer um filme de que pudéssemos pegar cada imagem, e ela fosse
bela. Meu sonho era captar cada fração de segundo como uma imagem
isolada, que poderia existir por si só.
Essa abordagem certamente foi facilitada, e talvez mesmo inspirada, pelo
fato de eu também ser desenhista.
O sr. pratica diversas atividades artísticas. Tem a impressão de conjugá-las
quando faz um filme?
Conscientemente, não; ao contrário, tento me abstrair de qualquer outro modo de expressão. Mas, como o cinema é por natureza uma arte composta, é
provável que isso transpareça.
Nesse filme não há nenhuma cena violenta, o que é raro
para o sr. Por quê?
Trata-se de meu filme mais violento, o único em que
as pessoas morrem sem motivo, de maneira inesperada. Para evocar essa violência extrema e injusta,
preferi deixá-la fora de campo, pois me pareceu que
mostrá-la só poderia dar um resultado medíocre.
Por que o sr. intitulou o filme "Dolls"?
Com exceção de "Sonatine" (1993), nunca sou o autor dos títulos de meus próprios filmes, é sempre
Mazayuki Mori [produtor de todos os filmes de Kitano] quem os encontra. A palavra me agradou porque se pronuncia bem em todas as línguas, inclusive
a japonesa, e porque sua sonoridade é muito próxima da de "idol" [ídolo].
A presença das marionetes envolve a idéia de que alguém as manipula...
Sim, talvez seja Deus, uma criança, um cineasta, o
destino... Mas eu prefiro deixar cada um responder
por si mesmo, não impor meu ponto de vista. No
que me diz respeito, é sobretudo uma criança que
em certo momento se cansa e joga fora as marionetes. O filme pára.
O sr. já tem outros projetos?
Estou pensando em um filme que conta de maneira
muito linear uma história muito simples, e que seria
filmado na ordem. Depois eu tentaria organizá-lo na
montagem de maneira totalmente diferente. Eu ensaiei essa abordagem em "Dolls", tentei desorientar
a relação com o tempo. É esse, por exemplo, o motivo da longa cena na praia. Eu gosto muito de praias,
que muitas vezes são desertas, e nela podemos encenar uma relação particular com o tempo e com o espaço, ninguém vem nos incomodar. Mas nesse filme
não pude ir tão longe quanto gostaria nessa tentativa
de desestruturação -não por causa da história, mas
por causa das cores.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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