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Polêmica entre Dostoiévski e o crítico Bielinski sobre as funções da literatura é reencenada a cada nova geração que surge
O compromisso ideológico do escritor
Juan José Saer
A relação entre Dostoiévski e Bielinski, o famoso crítico literário
russo, teórico, nos últimos anos
de sua vida, do realismo social e
do papel revolucionário da literatura, foi
breve, porém intensa e complexa, terminando em ruptura, apesar da apaixonada coincidência intelectual e artística do
início. O caso é mítico na história da literatura russa. Em maio de 1845, Dostoiévski, então com 23 anos, acabara de
terminar o manuscrito de seu primeiro
livro, o romance "Pobre Gente". Seu primeiro leitor, o poeta Nekrassóv, entusiasmado, decide mostrar o manuscrito
a Bielinski, que, embora cético em um
primeiro momento, aceita escutar sua
leitura. Aos poucos, o texto desse desconhecido vai vencendo suas resistências
até provocar-lhe uma indizível emoção,
convencendo-o de que um escritor profundamente original acabara de surgir
nas letras russas. Bielinski era o crítico
mais influente da Rússia naquele momento, o que fez com que, no dia seguinte, Dostoiévski fosse célebre no mundo
literário, sem ainda ter publicado uma
única linha, excetuando a tradução de
"Eugênia Grandet", de Balzac. Depois de
sua primeira visita a Bielinski, saiu para a
rua se sentindo, segundo suas próprias
palavras, "como que enfeitiçado".
O feitiço durou pouco. No ano seguinte, Dostoiévski publica seu segundo livro, a novela "O Duplo", que, em vez de
seguir a escola do realismo "natural" recomendada por Bielinski, inspirava-se
nos contos fantásticos de Hoffmann e
Púchkin. O livro produziu forte rejeição
no círculo de Bielinski, e os mesmos que
tinham elogiado Dostoiévski por seu primeiro livro o atacaram e ridicularizaram
por causa do segundo, de modo que sua
reputação literária, que fora forjada numa noite, estava destruída um ano mais
tarde, e sua reconstrução levaria duas décadas, em meio aos mais dramáticos
acontecimentos.
Estética e política
As discrepâncias
entre o crítico e o escritor eram a um só
tempo estéticas e políticas: Bielinski, inspirando-se cada vez mais no jacobinismo da Revolução Francesa, pensava que
uma ação violenta devia deitar por terra
o poder dos czares e considerava que a literatura devia se dedicar principalmente
a descrever as reais condições da sociedade russa. Para Dostoiévski, a forma é o
principal elemento da obra artística.
Quanto à transformação social, sua posição, que reforçou com o passar dos anos,
pregava uma espécie de cristianismo
messiânico.
Leonid Grossman, seu biógrafo, descreve o contraste nos seguintes termos:
"Em seus últimos anos, Bielinski combate incansavelmente o romantismo, o fantástico, o idealismo. Reclamava um quadro exato da sociedade para lutar contra
ela. Declara guerra contra tudo o que é
sonho, intuição, ilusão. Mas Dostoiévski
não adotava cegamente a poética da escola naturalista, impondo a condição de
conservar seu direito ao romantismo, ao
fantástico, e até à psicologia".
Duas décadas depois da ruptura, Dostoiévski rememora seu último encontro
com Bielinski, em 1847. O crítico estava
então tuberculoso e morreria no ano seguinte. Os dois se encontraram na rua,
perto da igreja da Epifania, aonde Bielinski costumava ir para contemplar a
construção da primeira estação de trens
de São Petersburgo. "É um consolo para
mim olhar estas obras: por fim, nós também teremos ao menos uma estrada de
ferro; você não calcula o alívio que isso
significa para mim." Essas palavras comoveram Dostoiévski, mas a ruptura já
era irreversível. Em suas declarações estéticas e políticas, Dostoiévski foi seguindo um caminho que o afastou cada vez
mais das posições de Bielinski. Mas sua
estranha influência continuará presente
em sua vida e em sua literatura. A bem da
verdade, ele continuou a se debater nessas contradições até sua morte, em 1881.
Seu gesto mais surpreendente foi a
adesão, no mesmo ano da ruptura com
Bielinski, ao círculo de Petrachévski, formado por intelectuais fourieristas partidários do socialismo utópico. Mas, por
outro lado, dentro desse círculo Dostoiévski adere à facção de Spejnev, um
grupo secreto com um programa ultra-radical de ação violenta. É preso em 1849
e, depois de um simulacro de execução
capital, é deportado para a Sibéria por
dez anos, quatro dos quais para cumprir
uma pena de trabalhos forçados.
Causa absurda
Quando se sabe de
sua ruptura com Bielinski, a causa de sua
prisão soa absurda: a leitura pública de
uma carta de Bielinski a Gogol que fora
proibida pelas autoridades, onde o crítico, que poucos anos antes escrevera o
primeiro grande ensaio sobre o autor de
"Almas Mortas", recrimina seu destinatário mais ou menos pelas mesmas idéias
sobre a literatura e a realidade social,
opostas às suas, que execrara no próprio
Dostoiévski. Também é evidente que, a
partir desse momento, a querela com
Bielinski e a problemática nela em jogo
fornecerão a Dostoiévski os temas, a intriga e a forma de seus principais textos
literários, como "Crime e Castigo", "O
Idiota", "Os Possessos" e "Os Irmãos Karamazóv". Sobretudo a forma.
Para incluir em sua obra as contradições em torno das quais se batem o intelectual e o artista russos, Dostoiévski inventa uma nova modalidade narrativa, a
que Bakhtin, como se sabe, chamou "romance polifônico" em seu extraordinário livro "Problemas da Poética de Dostoiévski" (Forense Universitária). E
Bakhtin não se cansa de repetir: "O princípio estrutural de Dostoiévski -união
de elementos heterogêneos e incompatíveis- constitui a chave artística de seus
romances: a polifonia". Nos grandes romances de Dostoiévski, o ponto de vista
do autor, encarnado em um personagem, não é nem mais nem menos preponderante que o das outras figuras
principais do relato, como se pode apreciar, por exemplo, nos vários membros
da família Karamazóv.
Um século e meio mais tarde, a querela
Dostoiévski/Bielinski parece superada.
Hoje todo mundo se declara formalista e
proclama a total autonomia do artista e
da arte. É a ideologia oficial do mercado
artístico na sociedade atual.
Novos tabus
Contudo, apesar dessas insistentes declarações de independência, não é difícil observar as múltiplas
coerções que pesam sobre a literatura,
patente não apenas na submissão do escritor aos ditames do mercado, cujas leis
trabalham contra qualquer tentativa de
inovação, mas também na falsa liberdade temática, que, banalizando pretensas
transgressões, se contorce nos estreitos
limites fixados por novos tabus escrupulosamente respeitados: o sexo, por exemplo, hoje apresentado como uma espécie
de esporte mundano, desinfetado de
suas impossibilidades e de suas dores. Os
que com mais fanatismo proclamam a liberdade do escritor e a preeminência da
forma são justamente aqueles que, com
fins comerciais, transigem com as mais
exorbitantes exigências do mercado.
Mas, por outro lado, as grandes decepções políticas do século 20, com suas trágicas distorções da história, tornaram
obsoleta a ilusão de uma arte engajada
posta inteiramente "a serviço da revolução", como exigiam os manifestos surrealistas. Uma inédita opacidade caracteriza cada nova etapa da sociedade. Para
o escritor de hoje, o presente tem a mesma emaranhada complexidade que teve
para Dostoiévski e Bielinski, o que gera
dificuldades de leitura e de representação equivalentes àquelas em torno das
quais eles se confrontaram. Assumir, por
conveniência ou estupidez, o comprometimento ideológico, por mais evidente e rentável que possa parecer, não bastará para ocultar um fato capital: para cada nova geração, a pergunta sobre a razão de ser de uma literatura e a maneira
como ela se constrói continuará aberta
como uma chaga.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino,
autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.
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