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+ literatura
Em suas memórias, o escritor Pedro Nava, cujo centenário de nascimento ocorre na quinta-feira, empreende uma exploração cultural e visionária do Brasil
Uma arqueologia do ser histórico
José Maria Cançado
especial para a Folha
Não é pouca gente do chamado
"modernismo em Minas" que
anda fazendo cem anos: Emílio
Moura, Carlos Drummond de
Andrade, Henriqueta Lisboa. Pedro Nava, contudo, cujo centenário de nascimento é no dia 5 de junho próximo, está
fazendo mais. "É muito tempo dentro de
mim, eu posso explodir", disse ele, não
muito antes de se suicidar em 1984, e como que entrevendo em si mesmo uma
enigmática multiplicação cronológica,
uma temporalidade metamorfoseada,
na qual os autobiografemas se acresciam
de heterobiografemas sem conta, a sua
inscrição cartorial, de classe e de "clã",
desapertava-se, rodopiando multiplicada numa barafunda compósita, tão elegíaca quanto foliona, a circunstância local do seu vivido saltava para o universal,
o balão cativo das lembranças pessoais se
tornava imenso balão coletivo das memórias expandidas. Há muito mais do
que cem anos aí.
Antes de se matar, ele já patenteara essa multiplicação cronológica nos seis livros já publicados: "Baú de Ossos", de
1972, "Balão Cativo", de 1973, "Chão de
Ferro", de 1976, "Galo das Trevas", de
1981, "Círio Perfeito", de 1983 ("Cera das
Almas", o que vinha escrevendo, ficou
incompleto). A cada um desses livros,
seus leitores pareciam ser tomados (continuam sendo) por uma pergunta: "Mas
onde estava isso antes?".
O isso referia-se não só à aparição súbita, meio ctônica, desse verdadeiro maciço literário, desse monte Pascoal literário, quando o seu autor beirava os 70
anos, cumprira exitosa carreira científica
e clínica, e sua atividade literária podia
ser contada em poucos e antigos registros de protagonista do modernismo dos
anos 20, de poeta incluído por Manuel
Bandeira numa antologia de poetas bissextos, embora fecundo e especial prosador de assuntos e temas da medicina (os
livros "Território de Epidauro" e "Capítulos da História da Medicina", ambos
da década de 40, devem ser publicados).
Acredito que o isso da pergunta dos leitores, e que parece lhes unificar o assombro, se refere mais aos dons que as memórias do escritor cearense-carioca-mineiro redispõem, o mobiliário sociocultural que elas arrastam de novo, nos dando assim desconhecidos posição e assento a uma certa matéria e experiência brasileiras que retornam, ou melhor, que sobrevêm ao nosso presente de uma maneira que levou Otto Lara Resende a
dizer, diante dos originais de "Baú de Ossos": "Trata-se um livro fundador, pois
sozinho dá notícia de toda uma cultura".
Notícia
Certamente não terá também escapado a Otto Lara Resende que
essa notícia é dada, nas memórias de Nava, de uma forma parecida àquela com
que Ezra Pound referia-se à literatura:
como uma notícia que continua sempre
notícia, tal é o regime da memória que há
nelas, tal é a sua potência de escrita, sua
invenção ou reinvenção estilística, as
quais como que "estouram" as tintas da
notícia, dando a esta uma verdade e direção para lá do noticiado, e ela mesma
-essa obra que tem como profusa e
muito mexida matéria a experiência brasileira- se constituindo numa experiência brasileira. Um modo de presença
de Pedro Nava da cultura brasileira.
Proponho uma hipótese (é só uma, haverá outras, de interpretação dessa obra
que é como objeto não de todo identificado em nossa literatura).
Uma hipótese para o isso da indagação
dos leitores, para essa feição de astro sem
atmosfera e contrapassante das memórias e para a multiplicação cronológica
aludida acima: multiplicação que é tão
mais fascinante porque é também e especialmente multiplicação identitária,
pois na obra de Nava o eu reminiscente
("titular" do memorialismo brasileiro
no seu conjunto, sob a forma do que
Darcy Ribeiro chamava de "senhorito fidalgo evocativo") se transforma em sujeito expandido da memória, o um vira
uns, multifário e multitudinário, o cartorial da origem vira experiência e fábula
da identidade, conquista de um nada no
bolso ou nas mãos.
Viagem identitária
O "Eu sou um
pobre homem do Caminho Novo das
Minas dos Matos Gerais", com que se
inicia "Baú de Ossos", paráfrase de trecho de uma carta de Eça de Queirós ("Eu
sou um pobre homem da Póvoa do Varzim"), não é queixa de quem arreia o fardo do viver logrado, mas voz de uma
persona muito compósita, senha e "leitmotiv" de uma imensa viagem identitária, estilística e mesmo civilizacional que
ali se inicia.
A hipótese é a seguinte: é que, aqui, ao
contrário do memorialismo predominante em nossas letras, a memória não é
evocação de um fanado, mas modo de
presença do não-lembrável. Não é reconstituição de um ícone perdido, é antes adivinhação do passado. Não é suspiro da reminiscência, mas ação póstuma
que sobrevém ao já extinto. Não é rol de
lembranças, é memória vidente; não é
arrumação piedosa do passado, é repovoamento visionário.
Alforria literária
Essa condição vidente da memória talvez só se realize,
diante dos leitores, pela utilização, pelo
Nava/narrador, de uma espécie, muito
pessoal, de escrita "providencial" (providencial num sentido análogo àquele com
que Antonio Candido fala na "linguagem providencial do barroco", com que
os escritores brasileiros dos séculos 17 e
18 deram expressão e identidade literária
à colônia). É que tal escrita, feita de uma
mescla estilística de conformação tão vária quanto eficaz, diferentemente do naturalismo de fundo em que o memorialismo entre nós ampara seu rito evocativo familiar e doméstico, vai buscar seus
materiais e procedimentos tão longe
quanto possível, numa larga e supreendente alforria literária e cultural.
Que se lembre a esse respeito as irresistíveis enumerações que há na obra de Pedro Nava, na qual a circunstância local e
os autobiografemas não receiam "desnaturar-se", indo buscar em repertórios,
códigos, assentamentos literários e históricos supostamente remotos sua plena
figuração emancipada (e mais de acordo
com a vida atópica, para frente e para
trás, e de tudo assujeitada, que é a da memória). Assim, a escrita das memórias se
torna exploração literária e cultural também visionária do nosso ser histórico
-uma arqueologia e uma imaginação
da nossa identidade. Já se vê: o modo de
presença Pedro Nava da cultura brasileira tem muito mais de cem anos e parece,
pelo proposto acima, que ainda o terá
muitas vezes.
José Maria Cançado é autor de "Memórias Videntes do Brasil - A Obra de Pedro Nava", que deverá
ser publicada pela editora da Universidade Federal
de Minas Gerais, e de "Os Sapatos de Orfeu" (ed.
Scritta), sobre Carlos Drummond de Andrade.
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