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Ponto de fuga
Humana e diversa
Jorge Coli
especial para a Folha
No dia 14 de maio, o ministro Gilberto Gil fez um discurso sobre política cultural. Parte de um preconceito:
"O conjunto das formas canonizadas pela cultura ocidental-européia", como enuncia, vem por ele condenado em nome de um nacional-populismo bastante assustador. As formas da cultura são múltiplas, mas, justamente, nenhuma deveria ser vista como inimiga.
Muito menos aquilo que o ministro entende por "cultura superior". Ela oferece agudos instrumentos de reflexão, de intuição e de sensibilidade. Permite a contradição. Conduz a interesses acrescidos, à busca do outro, à
relativização do nós.
O ministro ergue-se contra a globalização, levantando
a velha arma do espírito nacional, tão caro aos governos
totalitários do passado. Menciona um "recado a dar ao
mundo", uma "mensagem de alcance planetário". Embora faça o elogio da mestiçagem, deixa de perceber que
toda cultura fecunda não é feita de identidades, mas de
cruzamentos. Reduz assim a própria idéia de mestiçagem a um instrumento ideológico. Esquece-se de que as
hegemonias culturais só se deixam abalar pela força das
contaminações. Não pensa em termos de humanidade:
pensa em termos do "nós" e dos "outros", cujo substrato pode ser antes lido como "nós contra os outros". Propõe, em todas as letras, "cultura como síntese do Brasil". A história já mostrou tanto: sínteses nacionais sempre eliminaram a diversidade do humano.
Ufanismo - Há passagens, no discurso do ministro Gilberto Gil, que parecem provir de falas oficiais nos tempos do Estado Novo. "Apesar de todos os traços culturais distintos e distintivos (...), somos igualmente brasileiros." Fraternos do Oiapoque ao Chuí. O clima é o de
eloquência parnasiana: "(Acreditamos na) grandeza do
povo brasileiro, por ter sido capaz, ao longo de 500 anos
de existência, sob o fogo da adversidade e o afago de
uma moldura natural paradisíaca, de construir uma civilização exuberante, vigorosa e criativa, que a cada dia
conquista e fascina outros povos que se debatem nos
seus impasses em busca de soluções para conflitos político-sociais". Numa visão idílica, este rincão bem-amado dá exemplo admirável às nações. Mais uma vez, a
Europa, e quem mais seja, se curva ante o Brasil.
Pobre Mozart - O ministro Gilberto Gil gaba, em seu
discurso, a energia "da indústria fonográfica em nosso
país, situada hoje entre as dez maiores do mundo". Isso,
diz ele, sem nenhuma política pública voltada para o setor. Resta a pergunta: quanto desse próspero domínio é
consagrado à assim chamada música erudita? Quanto é
consagrado às manifestações musicais do mundo inteiro, de todos os continentes, que não sejam as promovidas por essa mesma indústria?
Ela promove apenas aquilo que lhe interessa. Não edita, assim, Mozart ou Beethoven. Diante da pobreza musical, Mozart e Beethoven seriam subversivos. Portanto
Mozart e Beethoven tornam-se, mais e mais, inatingíveis para a grande maioria dos que vivem neste país.
Aqui, todos sofrem o sequestro das formas musicais
complexas, sequestro muitas vezes defendido em nome
do "nacional" e do "popular". Qualquer um que queira
escapar do mercado fonográfico brasileiro, buscando
gravações vindas de outros países e de outras culturas,
sabe o quanto as taxas de importação são pesadas e
proibitivas. A mesma coisa ocorre para fitas de vídeo e
DVD. Para maior alegria do nacionalismo cultural e
dessas prósperas indústrias, assim protegidas.
Questão - O ministro referiu-se, em seu discurso, às distorções introduzidas pelas leis de incentivo à cultura.
Dinheiro que deveria ir para os cofres públicos fica destinado, pelas grandes empresas, a projetos culturais que
lhes convêm. É sem dúvida essencial que essa situação
perversa seja revista, como propõe o ministro. Resta saber se, voltando aos cofres públicos, tais recursos servirão ao estímulo de uma cultura sem cabrestos nacionais, que brote de verdadeira diversidade.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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