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A ZONA CEGA DO RADICALISMO
DEFENDENDO O MARXISMO COMO O MELHOR APARATO PARA PENSAR O SÉCULO 20, LIVRO DE PAULO ARANTES FAZ VISTA GROSSA AOS DESPOTISMOS DE ESQUERDA E DEIXA À MOSTRA A INSUFICIÊNCIA DA TRADIÇÃO CRÍTICA BRASILEIRA
Ruy Fausto
especial para a Folha
Zero à Esquerda" [ed. Conrad, 312 págs., R$ 25,00]
reúne artigos sobre política e cultura, publicados
por Paulo Eduardo Arantes entre 1997 e 2001, tratando de temas como "a fratura brasileira do mundo", cultura e barbárie, nação e nacionalismo, os movimentos de 68 etc. Traz, por um lado, algumas análises críticas muito ricas e de muito bom nível teórico (o autor
acerta mais lá onde, pelo menos em parte, filosofa, o que já
sugere que a sua passagem da filosofia à não-filosofia talvez não tenha sido tão bem-sucedida). Ao mesmo tempo,
no interior do campo de visibilidade do texto, há uma zona cega. A tese geral subjacente é a de que a história do século 20 teria correspondido bem ao que Marx [1818-1883],
previra, e a de que o marxismo forneceria o melhor aparato conceitual para pensá-la.
Ora, se é verdade que o curso do capitalismo parece seguir, em grandes linhas -não em detalhe- a direção que
Marx havia suposto (globalização etc.), há entretanto
muita coisa no século (cuja história não é apenas a do capitalismo) -pense-se nas ditaduras stalinista e maoísta e
no genocídio cambojano- que não tem nada a ver com o
pensamento marxiano e vai à contramão daquilo que
Marx imaginara.
Aqui se objetará, em primeiro lugar, que Arantes introduz, explicitamente, elementos críticos. Em segundo lugar, que, se houve ditaduras despótico-burocráticas
"igualitaristas", elas parecem estar em processo de extinção. Mas o distanciamento de Arantes em relação ao marxismo é insuficiente ou ilusório. O capitalismo se revelaria
mais destrutivo e menos "progressista" do que Marx supôs (pág. 134), e o autor é cético e quase niilista em relação
às perspectivas atuais. Porém suas observações críticas
aparentemente muito radicais (não se sabe mais o que é o
socialismo etc.) serão de pouco alcance enquanto, como
dizem os franceses, "não varrermos à nossa porta".
Por baixo do pano
Na realidade, o discurso crítico de
Arantes pressupõe como ideal não apenas uma sociedade
"reconciliada", mas uma sociedade sem nenhum tipo de
abstração social. Isso é ilegítimo mesmo em relação ao que
ele próprio escreve sobre as dificuldades atuais em definir
o socialismo. Por outro lado -o que vai junto-, ele não é
capaz de pensar na sua especificidade -e com todo o peso que merece- o fenômeno dos despotismos burocráticos "de esquerda" (ao privilegiar esses temas, espero não
ter sido vítima daquela "obsessão anticomunista" (sic,
pág. 266) que o autor imputa a Claude Lefort: a minha tese
é a de que o segredo do livro de Arantes está nesses objetos
em parte não tematizados. Pergunto-me mesmo se, com
algumas exceções, não se toca aí numa insuficiência da
tradição crítica brasileira, insuficiência que dificulta também a compreensão do Brasil). De fato, Arantes trata muito pouco dos despotismos "de esquerda" e, quando o faz,
é para remetê-los, por baixo do pano, a um contexto teórico, apesar de tudo, tradicional.
Assim, se ele critica o leninismo e o stalinismo, o faz denunciando o "produtivismo modernizador" (pág. 145) ou
"a acumulação primitiva em um só país" (pág. 147).
Quanto à Revolução Russa, ele vê a sua debilidade, citando um historiador, na "estratégia dos dois passos",
"primeiro a conquista do poder e depois a transformação
do mundo" (pág. 148). Fórmulas que têm o defeito de deixar escapar a descontinuidade que o regime despótico burocrático institui em relação à história do desenvolvimento capitalista e fazer daquele um simples momento dessa
história. Para ter uma idéia de até onde vai essa tese, leia-se
esse texto: "Num certo sentido, as crises ficaram mais claras: não é muito difícil se convencer de que doutrinas políticas, sistemas filosóficos, códigos jurídicos e assemelhados não podiam mais ofuscar a verdade enunciada pela
fórmula trinitária do Apocalipse da civilização capitalista:
Auschwitz, Gulag, Hiroshima, a simbiose entre forças
produtivas, servidão e extinção" (pág. 229).
Assim, o Gulag -um Auschwitz-capitalista também
deveria ser rediscutido- é incorporado, sem mais, à "civilização capitalista", isto é, posto na conta da capitalismo
(cf. pág. 142, em que a queda do Muro de Berlim aparece
como "reprise" dos movimentos de 68). Um aluno de primeiro ano da mal-amada "ciência política" não cometeria
erros daquele quilate.
O "nosso lado"
A outra objeção é a de que, seja como
for, o despotismo burocrático "de esquerda" terminou o
seu curso. A esse respeito, duas observações. Primeira, se
ele de fato está "em fim de linha", restam alguns exemplares, um deles na América Latina (sobre esse, praticamente
nenhuma palavra. Observo, en passant, que um dos gurus
do autor é Ignacio Ramonet, diretor do "Monde Diplomatique", um homem que fez a proeza de ir a Havana para falar contra a falta de liberdade de imprensa... nos EUA.
Fidel Castro premiou esse jornalista tão corajoso, editando-o a 10 mil exemplares). Para além disso, em via de
desaparecimento ou não, o despotismo burocrático marcou de tal forma o século 20 e a história da esquerda que é
impossível ter hoje uma perspectiva clara para o futuro
(inclusive para entender e criticar o capitalismo) sem ter
levado até o fim a reflexão sobre ele. Lido como deve ser lido, como alguma coisa que surgiu a partir da prática do
"nosso lado" (e não em exterioridade com relação à pratica da esquerda), o despotismo burocrático veio questionar a hegemonia centenária do marxismo no movimento
socialista, pois, da reflexão sobre o fenômeno, resultaram
duas exigências: uma, a de separar democracia e capitalismo, evitando supor mutualmente fundantes esses dois
objetos coexistentes; outra, a de pôr em dúvida a tese de
que a circulação simples, a economia de mercado ou mesmo a simples existência da propriedade privada devam levar, necessariamente de algum modo e mesmo se por um
processo contraditório, ao desenvolvimento -e desenvolvimento máximo- das relações capitalistas.
As duas guinadas implicam considerar como utópico o
que Marx considerava como realista e realista o que Marx
considerava como utópico. Só num momento, ao se referir
a um livro de Paul Singer, publicado na coleção "Zero à Esquerda", que o autor dirigia, ele envereda pelo que é essencial do ponto de vista crítico : "(...) socialismo e democracia
para Singer são sinônimos. O sufrágio universal foi "arrancado" pelos de baixo. O Estado de Direito também é um
implante socialista, também foi arrancado pelos despossuídos, pois o Estado liberal sempre foi oligárquico" (pág.
296). Muito bem. Mas, se levarmos a sério essas teses de
Singer, o livro de Arantes tem de ser reescrito.
Reforma ou revolução?
Esses erros de perspectiva
têm conseqüências. Marcuse aparece como o verdadeiro
herói da "teoria crítica", ele que, no meio do delírio criminoso da chamada "revolução cultural" chinesa, afirmava
que o socialismo estava sendo construído na China. Pouco
ou nada se fala do Adorno da última fase, o do notável
"Notas Marginais sobre Teoria e Prática", texto que faz a
crítica da violência, rompe com toda visão maniqueísta,
mas também monista, da história e contém uma análise
admirável do lado autoritário do movimento de 68.
Em que o livro de Paulo Arantes poderia servir para pensar a situação brasileira? Para os problemas que enfrentamos, embora difíceis, só o caminho das reformas -não o
das ilusões revolucionárias- parece oferecer possíveis soluções; mas reforma, para Arantes, é mais ou menos o
equivalente do demônio.
O livro não nos ajuda a pensar o grande problema da esquerda atual, depois da crise do modelo keynesiano: o de
defender e ampliar conquistas sociais sem retomar o modelo do Estado-providência clássico. Para Arantes, o problema não existe, apenas se fechou um parêntese. Somos
remetidos de volta ao "Manifesto Comunista", o qual, segundo o autor -lembremos que o "Manifesto" prega simplesmente a abolição da propriedade privada-, seria "hoje muito mais verdadeiro do que há 150 anos". Quanto à tese de Arantes de que o capitalismo pós-keynesiano mimetiza o marxismo vulgar, ela tem alguma verdade, mas oferece dificuldades: menos do que transparência, surgiu,
creio, uma nova opacidade. E o capital não domina o mundo com o monolitismo que o autor supõe.
Ruy Fausto é filósofo, professor emérito da USP e leciona na Universidade de Paris 8. É autor de "Marx - Lógica e Política" (ed. 34) e "Dialética
Marxista, Dialética Hegeliana" (ed. Paz e Terra).
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