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REVOLUÇÃO NO ESTUDO DA BIBLIOGRAFIA LEVOU DISCIPLINA A ULTRAPASSAR O ÂMBITO DOS
LIVROS E INVESTIGAR OUTRAS FORMAS CULTURAIS, COMO MÚSICA, FOTOGRAFIA E ARQUITETURA
OS IMPRESSORES DA MENTE
por Robert Darnton
Por que a bibliografia é importante?
Não se trata apenas de fazer uma lista de livros -o tipo de exercício que
costumava ser imposto aos alunos
por seus professores e que pode ser reduzido a uma fórmula padronizada (autor
-começando pelo sobrenome-, título,
editora, data e local de publicação)? Para
que nos preocuparmos com coisas desse
tipo se agora podemos buscar textos diretamente no ciberespaço, desligados de
suas âncoras bibliográficas? Não teria a
fórmula antiga sido relegada à obsolescência, substituída pela moderna (conectar-se, descarregar da rede, imprimir)?
A primeira resposta nos chega sob a forma de um aviso: cuidado! O ciberespaço
está se enchendo de lixo. As palavras que
você vê na sua tela podem não corresponder àquelas de que você precisa. Elas podem vir de fontes impuras, ter sido contaminadas por programas defeituosos ou
desaparecer no futuro, por problemas como a invalidação de links. Nunca confie
num texto que não venha acompanhado
de um atestado de saúde bibliográfico.
Mas pode haver uma solução para esses
problemas. Os técnicos estão trabalhando
para encontrá-la. Os computadores de
amanhã, quem sabe, já virão equipados
com filtros que façam o lixo desaparecer.
Se pudermos obter um "Hamlet" limpo,
nem abastardado nem expurgado, para
que nos preocuparmos com detalhes como local e data de publicação? O espaço e o
tempo parecem ter sido abolidos pela internet, que torna tudo disponível em todo
lugar e ao mesmo tempo, como os museus
e as bibliotecas infinitos e imaginários sonhados por Borges e Malraux.
Teóricos e filósofos da literatura já levaram essa fantasia ainda mais adiante, na
medida em que apagaram a fronteira entre
a literatura, vista como corpus de textos
vinculado a um núcleo de clássicos, e a
prosa da vida cotidiana. Se toda a expressão pode ser entendida como "escritura"
(Barthes), interpretada como discurso
(Michel Foucault), reduzida a tropos (Hayden White), jogada como jogos de linguagem (Wittgenstein), compreendida como
atos de discurso (Austin) ou lida como texto (Paul Ricoeur), então, por mais que se
busque um chão sólido, se é condenado a
vagar a esmo num ermo semiótico.
Os textos literários não irão diferir de nenhum conjunto de sinais, e a literatura pode existir só na mente dos leitores, a julgar
por Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, Stanley Fish e toda uma escola de teóricos da
recepção. Livros desencarnados não merecem ser acompanhados pela menção de
suas origens -autores, editoras, locais e
datas de publicação. Para que, então, nos
preocuparmos com bibliografias?
A época de ouro da edição
A segunda resposta a essa pergunta diz respeito à
própria natureza da bibliografia. Ela pode
não ser mais do que uma lista de títulos,
mas, em sua forma mais elevada, ela envolve o estudo rigoroso dos livros como objetos físicos. Ao analisá-los em sua dimensão
física, a bibliografia quer compreender algo fundamental referente ao processo de
comunicação -como, por exemplo, os
pensamentos de Melville e Milne se concretizaram em sinais impressos sobre papel e foram transmitidos a leitores sob a
forma de páginas encadernadas para formar livros. Sir Walter Greg, a autoridade
máxima nesse tipo de bibliografia, a definiu como a ciência da transmissão de documentos literários.
Essa nova "ciência" tornou-se uma força
poderosa nas ciências humanas durante a
primeira metade do século 20, graças a
uma geração de grandes bibliógrafos
-Greg, R.B. McKerrow e H.G. Pollard-,
que muniram a nova disciplina de padrões
que, em pouco tempo, se fundiram numa
ortodoxia. Em 1950, acadêmicos de toda a
Grã-Bretanha e dos EUA já aceitavam a
idéia de que, para poder estudar literatura,
era preciso compreender os livros como
objetos. A bibliografia virou requisito para
o Ph.D. em muitos departamentos de língua inglesa. Ao lado da filologia e de outras
habilidades profissionais, os alunos de
pós-graduação aprendiam a reconhecer
formatos, cotejar assinaturas, detectar supressões, distinguir tipos de letras, identificar filigranas, analisar artes e identificar
encadernamentos. Os 50 anos seguintes se
tornaram a época de ouro da edição. Um
clássico após outro foi reaparecendo em
traje acadêmico completo.
Os estudos shakespearianos, especialmente, floresceram nesse ambiente. Como
Shakespeare nunca se preocupou em publicar suas peças e nenhum de seus manuscritos sobreviveu -ou virtualmente nenhum: ainda existem talvez três páginas
dos fragmentos de uma peça inédita, "Sir
Thomas More", em sua própria letra-,
não possuímos versões definitivas de seus
textos. Para ele, aparentemente, o que contava era a encenação, e ele provavelmente
ia modificando os roteiros à medida que a
ação no palco se desenvolvia. Podemos
imaginar seus rascunhos primeiros e suas
cópias da peça usadas pelo ponto, com
anotações, mas, para encontrar seus textos, precisamos abrir caminho em meio às
edições cheias de falhas produzidas pelas
gráficas de sua época.
"Hamlet" saiu pela primeira vez em um
in quarto de 1603, depois em um in quarto
de 1604-5, duas vezes mais longo que o primeiro, e, depois, em um fólio de 1623, que
tem 85 versos novos e difere muito de ambas as edições anteriores. "Rei Lear" apresenta tantos enigmas que seus editores
mais recentes imprimiram duas versões da
peça em "The Complete Oxford Shakespeare". Assim, hoje temos dois "Rei Lear",
e isso nos enriqueceu, graças à bibliografia.
Charadas textuais desse tipo vêm inspirando gerações de estudiosos a realizar
proezas de virtuosismo bibliográfico desde a década de 1890, quando Greg e
McKerrow começaram a desenvolver a
chamada "nova bibliografia", quando
eram estudantes no Trinity College, em
Cambridge. O estudo detalhado de primeiras edições já levou bibliógrafos a rastrear pistas tipográficas de toda espécie
-inconsistências ortográficas, irregularidades no espaçamento, tipos lascados,
qualquer coisa que pudesse ajudá-los a reconstruir os processos de produção das
gráficas elisabetanas e, com isso, chegar
mais perto das primeiras edições desaparecidas das obras de Shakespeare.
A bibliografia não desapareceu, mas foi
posta de lado e deixada para trás pelas tendências mais recentes da erudição literária.
Desde a nova crítica dos anos 1940 até a
desconstrução da década de 1960 e o novo
historicismo dos anos 1980, os textos foram se desligando, cada vez mais, de sua
encarnação em livros. A bibliografia passou a ser vista como algo não apenas arcano, mas também arcaico. Ela desapareceu
dos currículos de pós-graduação e de escolas de biblioteconomia. Para uma geração
que assistira à queda do cânone e à ascensão da internet, a análise detalhada de livros raros perdeu seu poder de atração.
Um herético no meio
Em meio a todo esse autoquestionamento, aconteceu o
inevitável: a heresia. Todas as ortodoxias
geram hereges, mas o Martinho Lutero da
bibliografia, Donald F. McKenzie, era visto
pela velha-guarda como especialmente
ameaçador porque era capaz de derrotar
os melhores entre eles em sua própria especialidade. Tendo assimilado os princípios de Fredson Bowers e se transformado
em gráfico perito, McKenzie deixou sua
Nova Zelândia natal e se mudou para
Cambridge, Inglaterra, onde escreveu uma
tese de doutorado, sob a orientação do
mestre bibliógrafo Philip Gaskell.
O livro resultante, "The Cambridge University Press, 1696-1712" (1966), foi saudado como um dos trabalhos mais rigorosos
já escritos na tradição de Greg e McKerrow. Mas tinha um aspecto inquietante:
não apenas fornecia uma análise bibliográfica de todos os livros produzidos pela
Cambridge University Press durante os 16
anos mencionados como também relacionava as evidências físicas dos manuscritos
encontrados nos arquivos da gráfica, e estes revelavam que as coisas não tinham se
dado da maneira como deveriam, de acordo com as idéias aceitas.
Os compositores não forneciam aos impressores as formas (páginas de tipos dispostas num quadro de ferro e já trancados
em seus devidos lugares, prontas para serem impressas) num padrão constante. Pelo contrário, o compositor mandava a forma completa para qualquer máquina que
estivesse livre. A regularidade da produção
ao nível do chão de fábrica compensava pelas irregularidades no trabalho de cada homem, numa maneira de organizar o trabalho que McKenzie chamou de "produção
convergente". Quando ele analisou todas
as implicações, parecia ter minado as próprias bases da bibliografia ortodoxa.
Os bibliógrafos anteriores partiam da
premissa de que cada livro passaria pela cadeia de produção seguindo um padrão linear constante: um compositor determinado passaria formas para os gráficos de uma
gráfica determinada, que produziria a edição, freqüentemente deixando rastros de
sua atividade no padrão de títulos, linhas
de direção ou figuras de imprensa deixados
no papel. Seria possível, assim, construir
uma série de inferências até chegar a uma
gráfica, um compositor e, pelo menos até
certo ponto, ao original, mesmo que estivesse faltando, como no caso de Shakespeare. Acima de todos, Shakespeare. A
busca por textos confiáveis de suas peças
era a mola propulsora de toda a disciplina.
Os principais bibliógrafos shakespearianos, especialmente Greg e Charlton Hinman, levaram as irregularidades em conta.
O estudo supremo de um livro da era de
Shakespeare, "The Printing and Proof-Reading of the First Folio of Shakespeare"
(1963), de Hinman, mostrou como o "primeiro fólio" apareceu enquanto outros livros estavam sendo impressos na mesma
gráfica. Em dado momento, Hinman chegou a usar o termo "produção concomitante". Mas a maioria dos bibliógrafos pegou
como unidade de análise o livro individual,
e não a produção da gráfica inteira, e essa linha de raciocínio, embora fosse válida dentro de seus limites próprios, os levou a formular hipóteses questionáveis sobre os homens que produziram as primeiras cópias impressas de Shakespeare.
Os atores da trupe de Shakespeare provavelmente tinham corrigido as provas antes de os compositores acrescentarem correções de última hora para a impressão
Em lugar de trabalhadores de carne e osso, imaginaram abstrações fantasmagóricas: compositores que batizaram de A, B, C
etc. e que eram vistos como tendo produzido de acordo com os princípios da ciência
bibliográfica. Entretanto, se a gráfica operasse segundo o princípio da produção
concomitante, seria difícil determinar padrões de produção precisos, e a cadeia de
inferências poderia se romper em momentos cruciais. A, B, C e todos os outros poderiam ser apenas frutos de imaginações bibliográficas, meros "impressores da mente". Foi esse o título que McKenzie deu a
um ensaio de 1969 que abalou o mundo
dos livros raros como um terremoto, pois
parecia ter exposto uma falha sísmica que
percorria sua disciplina inteira -a não ser
que ele tivesse entendido tudo errado.
Para provar que ele estava errado, o campo dos seguidores de McKerrow e Bowers
apresentou dois argumentos: primeiro,
que a Cambridge University Press, uma
firma pequena e especializada aberta numa cidade de interior no início do século
18, não poderia ser usada como exemplo
das grandes gráficas de Londres que a antecederam em quase um século; segundo,
que a evidência dos manuscritos não podia
ser decisiva em argumentos baseados nas
características físicas dos livros.
Raciocínio dedutivo
McKenzie foi
buscar a resposta ao primeiro argumento
nos papéis de William Bowyer, um grande
impressor de Londres, descobertos em
1963. Eles confirmaram o princípio da produção concomitante e revelaram padrões
ainda mais complexos e irregulares no fluxo de trabalho. Alguns anos mais tarde,
Jacques Rychner demonstrou que a análise
de McKenzie também era válida para a
produção de livros na gráfica da Société
Typographique de Neuchâtel (Suíça).
É verdade que os arquivos de Cambridge, Londres e Neuchâtel eram todos originários do século 18. Mas não tinham ocorrido mudanças significativas na tecnologia
de impressão entre 1500 e 1800. As três fontes de manuscrito, as únicas que se sabia
terem sobrevivido daquela época, provavam que McKenzie tinha razão.
Mas será que manuscritos poderiam valer como provas? Liderados por G. Thomas Tanselle, um dos principais discípulos
de Bowers, os bibliógrafos ortodoxos disseram que não. O que fazia a bibliografia
ser verdadeiramente científica, aos olhos
deles, era o fato de não aceitar qualquer
coisa que não pudesse ser inferida da inspeção dos próprios livros. Como a química
ou a física, uma ciência baseada em livros
tinha que ser fundamentada no mundo físico. Se não fosse, poderia sair voando em
inferências e interpretações que poderiam
ser tão subjetivas quanto qualquer variedade de crítica literária.
McKenzie retrucou fazendo a defesa do
raciocínio dedutivo, das hipóteses falsificáveis e do rigor interpretativo baseado em
fatos históricos. A discussão, pontilhada
por citações de Bertrand Russell, Karl Popper e Thomas Kuhn, ficou atolada em desentendimentos quanto a o que poderia
ser visto como científico (admito que escrevo tomando o lado de McKenzie na discussão). Mas ela possuía um fascínio peculiar porque fazia perguntas sobre a natureza da ciência no contexto da literatura.
Os velhos "novos bibliógrafos" se baseavam em conceitos que remetiam ao século
19 e podiam ser caracterizados como positivismo textual. McKenzie aproximou a
nova bibliografia da epistemologia mais
problemática das chamadas "ciências humanas" do século 20 e a abriu para a ampla
variedade de história sociocultural que estava se desenvolvendo na França na época.
Quem saiu ganhando? Hoje já parece claro que foram ambos. Em 2000, quando os
bibliógrafos comemoraram o 600º aniversário do nascimento de Gutenberg -ele
teria nascido em 1400, mas, na realidade,
sabemos muito menos sobre ele do que o
pouco que sabemos sobre Shakespeare-,
várias publicações deram provas da vitalidade da aplicação do estilo Greg ao estudo
dos livros do final da era medieval e início
da moderna. Com as novas técnicas de
análise de papel, tinta e tipos, especialistas
como Paul Needham, Richard Schwab e
Blaise Agüera y Arcas transformaram nossos conhecimentos sobre como foram produzidos os primeiros livros impressos.
Análises bibliográficas adicionais dos livros da época de Shakespeare também
aprofundaram nossos conhecimentos de
seus textos. Em "The Texts of King Lear
and Their Origins" (1982) e "The First Folio of Shakespeare", o catálogo de uma exposição magnífica realizada na biblioteca
Folger em 1991, Peter Blayney tratou de cada aspecto do "primeiro fólio", desde as
negociações entre os primeiros gráficos
para conseguir o original até a formação de
coleções em bibliotecas modernas.
Blayney também mostrou que os atores
da trupe de Shakespeare, a Companhia dos
Homens do Rei, provavelmente tinham
corrigido as provas antes de os compositores acrescentarem correções de última hora durante o processo de impressão. E a
primeira publicação incluiu três edições
distintas: uma tinha 35 peças; uma tinha
36, incluindo "Troilus e Cressida", mas
sem o prólogo desta, e outra tinha 36, com
"Troilus" completa com o prólogo. Os gráficos espalharam pistas dessas irregularidades nas marcas deixadas no texto. O texto estava sempre mudando, passando
morfologicamente de um estado a outro.
O escritor profissional
Essa lição, tirada do "livro mais importante em língua
inglesa", nas palavras de Helen Gardner, se
estendeu do "primeiro fólio" para os livros
do início da era moderna de modo geral e
reforçou um dos principais argumentos de
McKenzie. Ao romper com a tradição de
Greg, ele tinha abandonado a idéia de que
os críticos textuais deveriam rastrear as
obras até uma fonte original pura. McKenzie desenvolveu esse ponto num influente
ensaio de 1977.
A primeira lei de direitos autorais apareceu em 1710. Intitulada "Uma Lei para o
Incentivo do Aprendizado pelo Investimento das Cópias de Livros Impressos nos
Autores ou Compradores de tais Cópias
durante os Tempos nelas Mencionados", o
chamado Estatuto de Anne conferiu nova
distinção aos autores.
Embora não chegasse a mencioná-los
em seu texto, reconhecia seus direitos de
proprietários sobre o fruto de suas imaginações. Daniel Defoe e Alexander Pope
mostraram que os autores podiam sustentar-se com a venda desses direitos. Na metade do século, Samuel Johnson era o paradigma do escritor profissional, sobrevivendo de sua pena em lugar de viver de patronato e comprazendo-se em seu papel de
suprir a demanda do mercado literário.
A própria literatura emergiu como sistema semi-autônomo organizado em torno
do livro impresso, em contraste com o
mundo das letras dos séculos 16 e 17. Sob a
égide dos Tudor e dos Stuart, a comunicação na esfera pública ocorria principalmente por meio de apresentações: no palco, em púlpitos, nos tribunais, nas ruas. Na
Inglaterra da era georgiana, a predominância passou para a palavra impressa,
embora os livros manuscritos continuassem a circular (se o número de cópias publicadas fosse inferior a cem, um livro podia ser produzido a um custo mais baixo
sendo copiado à mão do que sendo impresso), e as notícias ainda eram difundidas pelo sistema boca-a-boca.
Assim, McKenzie anunciou que a transformação das letras em literatura precisava
ser entendida dentro de uma perspectiva
ampla, algo ao qual ele chamou "a sociologia dos textos". Da ciência à sociologia, nada poderia estar mais distante da disciplina
de Greg, McKerrow e Pollard, mas ela
abriu um caminho para a bibliografia anglo-americana formar uma junção com a
"histoire du livre" francesa, uma espécie de
história do livro extremamente ampla desenvolvida por Lucien Febvre e Henri-Jean
Martin. Em "L'Apparition du Livre"
(1958), eles relataram o impacto do invento de Gutenberg sobre fenômenos sociais e
econômicos de longo prazo, tais como a
organização das escrivaninhas, o preço de
trapos e pergaminhos e o desenvolvimento
das rotas comerciais.
Enfatizaram a necessidade de evidências
quantitativas para medir a continuidade e
compará-la às transformações. E, como
partidários da escola histórica dos Anais,
detectaram padrões duradouros de estabilidade estrutural, o que os levou a desafiar
as idéias largamente aceitas -especialmente a de que Gutenberg teria revolucionado as indústrias da comunicação.
Para eles, a invenção dos tipos móveis
desacelerou o processo de transformações,
porque os primeiros livros impressos perpetuaram as características arcaicas das
obras manuscritas, em lugar de fazer experiências ousadas com estilos novos.
Interesses comerciais conservadores chegaram a dominar o comércio de livros mesmo em
tempos revolucionários
McKenzie tentou algo semelhante ao estudar o comércio livreiro de Londres como
um todo, por meio de três cortes cronológicos feitos em todas as evidências sobreviventes de 1644, 1668 e 1689. Ao examinar
tudo o que tinha sido impresso num único
ano, ele aplicou o princípio da produção
concomitante à produção de livros em todo o setor. Uma pesquisa nessa escala exigia uma quantidade prodigiosa de trabalho, porque McKenzie combinava as
quantificações baseadas em sua fonte
principal, o "Short-Title Catalogue" de livros impressos entre 1641 e 1700, de D.G.
Wing, com um exame de cada cópia que
pudesse localizar nas principais bibliotecas de pesquisas.
Revisionismo
Em relação a 1668,
Wing e algumas fontes adicionais forneceram um total de 491 títulos, dos quais
McKenzie estudou fisicamente 458. Ele
não conseguiu fazer uma descrição analítica completa de cada um deles, mas seu
olho perito detectou diversas tendências e
vários pontos inesperados. Os nomes dos
impressores não apareciam em mais da
metade das páginas de rosto.
Quase um terço da produção total era
formada de novas tiragens. E apenas 52 livros ostentavam alguma forma de licença
ou autorização oficial para serem publicados, apesar das exigências da Lei de Licenciamento, de 1662. A principal preocupação dos livreiros era proteger seus próprios direitos, e isso eles podiam fazer por
meio de "combinações" informais feitas
entre eles, como acordos para fazer marketing e vendas conjuntos. A impressão
que se tinha era a de que os impressores e
os livreiros faziam seu trabalho sem prestar muita atenção à política e sem desenvolver muita sede de inovações.
Interesses comerciais conservadores
chegaram a dominar o comércio de livros
mesmo em tempos revolucionários. Ao
examinar quase tudo aquilo publicado em
1644, no auge da guerra civil inglesa,
McKenzie constatou um grau surpreendente de continuidade na produção global, principalmente de livros, em oposição
a sermões e panfletos. Ele rejeitou o argumento proposto por Christopher Hill e
Keith Thomas, segundo o qual uma explosão inusitada de literatura política teria
ocorrido no início dos anos 1640 em razão
da liberdade da imprensa. Nem o fim do
controle do Estado, em 1641, nem sua restauração, em 1643, exerceram grande efeito sobre o setor dos livros, argumentou
McKenzie, porque os livreiros continuaram a buscar seus lucros das maneiras já
conhecidas, sem preocupar-se com as mudanças na lei.
Quando a revolução de 1688 gerou mais
uma mudança nas regras do jogo e, em
1695, chegou ao fim a censura prévia à publicação, McKenzie mais uma vez enxergou isso como prevalência da continuidade e dos interesses econômicos, muito
mais do que sinal do triunfo da liberdade.
A Companhia dos Papeleiros perdeu seu
monopólio sobre o comércio de livros,
mas seus membros continuaram a dominar o setor. Na Inglaterra, assim como na
França, a quantificação levou a resultados
revisionistas: as tendências socioeconômicas de longo prazo pareciam pesar mais do
que as mudanças políticas passageiras.
McKenzie foi o único bibliógrafo que
podia desafiar as idéias largamente aceitas, trabalhando em dois registros: a bibliografia analítica e a enumerativa. Mas
não foi dele a última palavra. Ele não teria
querido que fosse. Dois livros publicados
após sua morte, em março de 1999, dão
uma idéia de suas realizações e daquilo
que seu trabalho abriu, para que pudesse
ser continuado e aprofundado por outros.
Desmontando idéias fixas
O primeiro deles, "Making Meaning - "Printers
of the Mind" and Other Essays", editado
por dois de seus antigos alunos, Peter D.
McDonald e Michael F. Suarez, S. J., reúne
seus ensaios mais importantes num único
volume, organizados habilmente por tema
e introduzidos de uma maneira que destaca sua originalidade. Eles mostram a mente
de McKenzie em ação, desmontando idéias
fixas e extraindo idéias novas mesmo dos
materiais mais resistentes. Além disso, levantam uma pergunta: poderia a grande
tradição que remonta a Greg desabar como
"um castelo de cartas bibliográficas", como
sugeriu McKenzie em alguns de seus momentos mais pessimistas?
O segundo livro, "Books & Bibliography
- Essays in Commemoration of Don
McKenzie", mostra que a resposta a essa
pergunta é "não". Nele, uma dúzia de historiadores dos livros discutem hipóteses
aventadas por McKenzie ao longo dos últimos 30 anos. Eles levam o princípio da produção concomitante para as gráficas do século 19, analisam as interações entre meios
de comunicação orais e impressos e estudam a transmissão de textos no sentido
mais amplo do termo -em música, fotografia e arquitetura. McKenzie ensinou que
a bibliografia pode ultrapassar o âmbito
dos livros. Ao seguir suas deixas, uma geração posterior mostrou que a bibliografia
oferece uma maneira de compreender a reprodução de formas culturais, sejam elas
quais forem, desde que se prestem à descrição rigorosa.
Enquanto isso, os campos tradicionais de
pesquisa continuam a se expandir. Não
apenas os bibliógrafos já penetraram mais
fundo no mistério que cerca Gutenberg e
Shakespeare, como também resolveram alguns dos problemas que deixaram McKenzie perplexo, décadas atrás. Depois de passar muitos anos estudando os documentos
de Bowyer, Keith Maslen constatou que a
análise preliminar de McKenzie envolveu
alguns erros de cálculo que o levaram a tirar conclusões exageradas quanto aos padrões de trabalho erráticos entre compositores e gráficos. Um núcleo de veteranos
mantinha um ritmo de produção bastante
regular na gráfica de Bowyer, apesar das
variações de curto prazo na produção de
alguns indivíduos.
Mas a conclusão básica de McKenzie permanece válida: as irregularidades na produtividade individual eram compensadas
pela coordenação do trabalho na gráfica
como um todo. Ademais, os trabalhos freqüentemente eram divididos entre diversas gráficas, gerando uma certa padronização nos produtos finais. A produção concomitante se espalhou pelo setor gráfico inteiro, e parece mais duvidoso do que nunca
que um bibliógrafo possa identificar folhas
específicas como tendo sido o trabalho de
compositores específicos com o simples
exame físico dos livros.
Robert Darnton é professor de história na Universidade Princeton (EUA) e autor de, entre outros, "Edição e Sedição" (Companhia das Letras).
Tradução de Clara Allain.
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