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Os venenos políticos desde a Antiguidade
Relações tensas entre os filósofos e o poder foram uma constante desde Sócrates e Aristóteles, passando por Descartes até chegar a Husserl, já no século 20
Juan José Saer
Faz algumas semanas, um escritor
sino-francês, François Cheng, foi eleito membro da Academia Francesa, e os telejornais resumiram o acontecimento com as seguintes palavras: "Um sábio ingressa na Academia".
Destacado especialista em pintura, caligrafia e poesia chinesas, François Cheng
tem de fato uma aparência venerável (é
magro, de bigodes achinesados e gestos
lentos e comedidos), mas o título de sábio que a televisão lhe outorga advém de
um automatismo associativo que atribui
a todo oriental uma sabedoria obrigatória, mais ainda quando se trata de um letrado.
Longe de mim pôr em dúvida a respeitabilidade intelectual de François Cheng,
que é autêntica, mas é lícito perguntar-nos se, nos tempos que correm, aspirar a
ser membro da Academia é realmente
um sinal de sabedoria.
Como prova o livro do historiador italiano Luciano Canfora, "Un Mestiere Pericoloso" (Uma Profissão Perigosa, ed.
Sellerio, 248 págs., 9,30 euros), traduzido
para o castelhano por Edgardo Dobry e
publicado pela editora Anagrama em
sua coleção "Argumentos", na agitada
vida dos filósofos da Antiguidade clássica, e ainda nos nossos dias, a sabedoria é um dom raro. Não confundamos sabedoria com saber. Diferentemente do castelhano e do português, o idioma francês diferencia "savant" (homem de ciência
ou que sabe muito sobre alguma coisa) de "sage" (que atingiu, por meio dos seus
atos e pensamentos, uma espécie de harmonia moral e mental que lhe dá a
inefável capacidade de se subtrair das contingências do mundo).
É evidente que, enquanto o saber veio ocupando um lugar central e cada vez
maior na história humana, a sabedoria, em compensação, sempre foi relegada e
mantida à distância pelo poder político.
E, se é imprescindível para a sabedoria
dominar um vasto saber, mesmo que seja para aprender a esquecê-lo, o saber, ao
contrário, não desemboca necessariamente na sabedoria. O saber chegou a ser
parceiro da opressão, sem que isso o tenha deixado totalmente a salvo do perigo; já a sabedoria é, por sua mera existência, seu constante questionamento. Canfora cita uma passagem de Diógenes Laércio em que ele diz que um tal de Metrodoro se afastou de Epicuro, "talvez incomodado pela incorruptível honestidade do mestre".
O livro da Canfora relata vários exemplos de uma mesma situação: o eterno
conflito entre o saber e a sabedoria, por
um lado, e o poder político, por outro. O
suicídio de Sócrates, acusado de corromper a juventude com suas idéias sobre religião; os perigosos fiascos de Platão em
suas três tentativas de melhorar os tiranos de Siracusa; os problemas de Aristóteles, macedônio de nascimento, com os
atenienses que o acusavam, talvez com
razão, de espionagem a serviço de Filipe
da Macedônia; a vida errante de Xenofonte, cujo interminável exílio, conta
Canfora, foi o castigo pela perpetração
de um massacre tão terrível que não lhe
permitiu nenhuma anistia.
Em Atenas, segundo Canfora, os processos por impiedade eram fáceis de
montar: "Constituíam o principal meio
para pôr sob suspeita e eliminar os intelectuais indesejáveis que não podiam ser
perseguidos por nenhuma atividade política evidente. Assim acontecera com
Sócrates e, provavelmente, também com
Anaxágoras" (que, apesar de sua amizade com Péricles, teve que fugir de Atenas
para salvar a vida).
O caso de Aristóteles merece ser exposto com mais detalhe: filho do médico oficial dos reis macedônios, Aristóteles chegou a Atenas aos 17 anos para estudar na
Academia, a escola de Platão, onde permaneceu por duas décadas, embora as
relações com seu mestre não fossem perfeitas. Certas fontes chegam a afirmar
que Platão, muito mais velho que seu
discípulo, criticava neste até suas roupas
e seu corte de cabelo (o que talvez fosse
um jeito de insinuar que se tratava de um
estrangeiro) e que, de tão competitivas,
as relações entre os dois acabaram numa
ruptura definitiva.
Mais ou menos no momento da morte
de Platão, os conflitos políticos entre atenienses e macedônios puseram em risco
a vida de Aristóteles, que teve de buscar
refúgio no Atarneus, na Ásia Menor, então governada por Hermias, um aliado
de Filipe da Macedônia. A guerra entre
Filipe e os atenienses era iminente, e, depois da batalha de Queronéia, da qual os macedônios saíram vitoriosos, Aristóteles voltou para sua pátria a fim de tornar-se preceptor de Alexandre, o Grande.
O general de 20 anos que vencera os
persas, velhos inimigos da Grécia, apesar
de ter sido educado pelo filósofo mais
eminente do seu tempo, caiu na mesma
armadilha em que caíram tantos pretensos soldados da civilização: acabou adotando a suposta barbárie dos vencidos.
Diante da revolta de alguns jovens oficiais de sua corte, entre os quais estava o historiador Calístenes, a repressão de
Alexandre, conta-nos Canfora, foi feroz,
encarniçando-se especialmente contra
Calístenes: "Ele foi horrivelmente mutilado, exibido numa jaula e finalmente
despedaçado por um leão".
"Guerra aberta"
Acontece que Calístenes era sobrinho de Aristóteles e um
pouco seu representante na corte de Alexandre, o vínculo vivo que ligava o filósofo ao imperador, e, portanto, o episódio marcou a ruptura definitiva entre os dois. Segundo Canfora, numa carta descoberta muito mais tarde, em plena fúria
ao saber da conjura, Alexandre, sem citá-lo diretamente, afirma que Aristóteles
era o instigador do movimento.
Mas o mais surpreendente é que algumas fontes afirmam que a morte repentina do imperador, geralmente atribuída a
um envenenamento, também teria em
Aristóteles seu principal responsável:
"Uma tradição que atravessou os séculos
atribui a Aristóteles a iniciativa de envenenar Alexandre. Plínio, o Velho, dá por verdadeira essa versão dos fatos. Plutarco também lhe dá muito crédito. Pensando bem, essa hipótese é só em parte surpreendente, pois também circulam
versões, às quais Diógenes Laércio dá crédito, de que Aristóteles, que, pela enésima vez, se afastara prudentemente de Atenas, também teria morrido envenenado, não se sabe ao certo se pelos atenienses, por ser macedônio, ou pelos macedônios, para vingar a morte de Alexandre" (também existe a suspeita de
que Descartes não tenha sido morto pelo ar glacial da Suécia, mas sim pelo veneno sub-reptício do Vaticano, administrado pelo próprio sacerdote que lhe deu a extrema-unção).
Em Atenas, processos por impiedade 'constituíam o principal meio para eliminar intelectuais indesejáveis'
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Canfora também cita o caso do poeta
Lucrécio, que em Roma, no primeiro século antes da era cristã, em seu extenso
poema "De Rerum Natura" (Da Natureza das Coisas), pôs em verso a doutrina
atomista de Demócrito e Epicuro, e que,
apesar de sua amizade com Cícero, levou
uma vida misteriosa e obscura, da qual
chegaram até nós alguns detalhes contraditórios e não raro fantasiosos. Canfora sustenta que esse ostracismo se deveu
à má reputação do poema, já que nele se
negava a existência dos deuses e se descrevia a atividade sexual em termos demasiado crus. Curiosamente isso também incomodava em Roma, e não só ao
cristianismo que mais tarde recolheria a
herança da Antiguidade clássica, interpretando-a à sua maneira.
Os problemas dos filósofos com o poder político persistem na atualidade. Em
1935, Husserl afirmava: "Os conservadores e os filósofos mantêm uma guerra
aberta, e é evidente que o campo de batalha é a esfera política (...). Desde os primórdios da filosofia, ela é alvo de perseguições. Os homens que consagram a vida às idéias são postos à margem da sociedade". No ano seguinte, os nazistas fizeram com que ele fosse expulso da universidade.
Antiguidade ideológica
Além de muito amena, a leitura de "Uma Profissão Perigosa" nos dissuade, se é que ainda restava alguma dúvida, de continuar acreditando na Antiguidade clássica como um período em que a filosofia e a ciência, a sabedoria e o saber, ocupavam o centro da sociedade, incitando os cidadãos a nortear-se por seus princípios.
Tudo indica que era o contrário, e o
mesmo vale para um Oriente estereotipado, puramente ideológico, à margem
da confusão humana, onde nosso perturbado Ocidente pretende achar alívio
para mais de um conflito. O livro da Canfora tem, ainda, um encanto adicional: o
de contar as peripécias dos textos de
Aristóteles, que, como se sabe, os árabes
foram resgatar, a partir dos séculos 8º ou
9º, na Síria e em Alexandria, aonde tinham chegado através de extraordinárias vicissitudes que Canfora explica em
metódicos fragmentos retrospectivos, os
quais recuam quase até o momento mesmo em que, durante suas aulas, as palavras saíam da boca do filósofo.
Se, como esse livro demonstra, a sabedoria é rara, é inegável que, em todo tempo e lugar, são muitos os que acreditam
possuí-la e muitos mais os que, por várias razões, se empenham em simulá-la.
La Rochefoucauld escreveu que a gravidade do corpo e do semblante costuma
ser útil para ocultar os vícios da alma.
Mas a eficácia desse ardil é relativa. Às
vezes se vê a quilômetros quem finge ser
sábio e não passa de um perverso.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (Iluminuras), "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (ambos pela Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.
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