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LINHAS DA INQUIETAÇÃO
Publicadas simultaneamente no Brasil, "Cartas a Suvórin", de Tchekhov, e o segundo volume das "Cartas" de Jung estabelecem um contraste fértil entre
o ceticismo elegante do escritor russo e as preocupações teológicas do psicólogo suíço
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Benedito Nunes
especial para a Folha
Quanto mais, atualmente, vai se tornando corriqueiro, em detrimento da carta, do velho gênero epistolar, mediado pelo serviço de correios e telégrafos, o uso da ultra-rápida correspondência eletrônica
do fax e do computador, mais vem aumentando o interesse tanto documental
quanto literário pela missiva escrita, como estilo de comunicação agora em
franco envelhecimento. São recentes
exemplos entre nós desse interesse duas
coletâneas de cartas -as de Carl Gustav
Jung (1875-1961) a vários consulentes e
as de Anton Tchekhov (1860-1904) a seu
editor Aleksei Suvórin-, equivalentes
em densidade informativa, mas diferindo na matéria e no estilo.
Clérigos católicos e protestantes, rabinos, pastores e padres, professores, principalmente de teologia, e autores de livros de psicologia e religião são os consulentes de Jung, com os quais discute,
por vezes longamente, questões religiosas, metafísicas e éticas, sob o ângulo da
doutrina por ele elaborada, principalmente segundo os padrões do inconsciente coletivo, os arquétipos.
A crítica à teologia e a todo sistema de
crença religiosa, firmado em verdades
dogmáticas, caracteriza a preliminar
ação da doutrina junguiana. Os dogmas
se enraízam no substrato psíquico dos
arquétipos; e o dinamismo do inconsciente coletivo funda a diversidade das figuras religiosas, sejam profetas, núncios
messiânicos ou divindades.
No entanto a crítica à teologia não oculta nem desarma a inquietação
teológica de Jung, um fino e apaixonado espírito especulativo a interrogar-se, sob a compressão dos mesmos operadores inconscientes, sobre Deus e deuses, o
problema do mal e a divindade de Cristo.
O teólogo dogmático julga saber o que Deus é em si. Não assim o autor das cartas, para quem "só há fenômenos psíquicos que, em última análise, são de origem desconhecida, pois a psique em si é irremediavelmente inconsciente... Nós deveríamos ser realmente modestos e não imaginar que podemos dizer qualquer
coisa de Deus em si. Defrontamo-nos, na verdade, com enigmas terríveis" (pág.
300). Deus se apresenta sob múltiplas formas; todas são idéias e não há uma
que seja mais verdadeira do que outra.
Politeísmo inevitável
"Falar de Deus ou sobre ele é mitologia, isto é, um pronunciamento de fundamento e causa arquetípicos. A mitologia, enquanto fato psíquico vital, é tanto necessária quanto inevitável. As especulações metafísicas
que se desenrolam no campo da razão (no sentido mais amplo) estão, portanto,
bem no lugar, à medida que estão conscientes de seus antropomorfismos e sua
limitação epistemológica" (pág .423).
Daí também ser o politeísmo inevitável. Pois que Deus são deuses. "Desse
ponto de vista, quaisquer deuses -Zeus,
Wotan, Alá, Javé, Summum Bonum
etc.- têm sua verdade intrínseca" (pág.
441). Quanto a Cristo, é a "imago Dei"
(imagem de Deus), no Ocidente; Buda, a
mesma imagem, em outra cultura. Teríamos que aprender a relativizar. Jung insiste nesse ponto: ele fala das imagens de
Deus, e não de Deus. Vivemos numa
época -continua o missivista- de credulidade e enredamento em palavras.
Somos suportados por estruturas psíquicas e jamais chegamos a sair fora
de nós mesmos. Por isso
não há fórmulas verbais
para resolver questões
que a vida desperta e
preenche.
No entanto Jung cultiva
a crença de que vivemos
numa época apocalíptica
(pág. 393). O novo que está para surgir será tão diferente quanto o século 20
em relação ao 19. Nosso
psicólogo, muito sério,
não permite a suspensão
humorística, sinal certo
de ceticismo, que é o que diferencia do
seu o estilo daquele de Tchekhov.
A fluência do humor e a observação
constante de quem olha para fora de si
distingue a inquietação de Tchekhov nas
cartas a Suvórin, seu editor: não é nem
crédulo nem se enreda em palavras, cortadas e controladas em nome de uma sóbria elegância. Quanto menos palavroso,
melhor o estilo. Eis o resumo da doutrina
de Tchekhov nos conselhos dados a Górki numa das cartas de outra notável coletânea. Ao autor de "O Duelo", "envolvido todos os dias com as ruidosas questões domésticas" (pág. 39), como diz a
Suvórin, não faltava energia para suprimir o supérfluo em proveito do detalhe
sugestivo, tal porque dividido estivera
entre a mulher legítima e a amante, ou
seja, entre a medicina e a literatura. Esta
lhe exigia o grande e sério trabalho de escrever. "Ler é mais divertido que escrever", comentava. Se tivesse mais 40 anos
de vida, aprenderia a escrever com talento, "ou seja, de modo conciso" (pág. 189).
Por enquanto, acha que escreve por hábito, como um funcionário, sem preguiça nenhuma. Mas, se o trabalho literário não lhe rende "mais de duas novelas
mensais" e a medicina não mais que 10 mil rublos anuais, isso se deve, nesse caso, a sua falta de gosto pelo dinheiro e, no outro, a sua declinante paixão pela literatura. Confessa, então, que lhe ocorre, "já deve fazer uns dois anos", certo tipo de psicopatia: tornou-se indiferente às suas
obras publicadas, às críticas e às conversas sobre literatura... "Encontro a explicação desse marasmo em minha própria
vida. Não estou desiludido nem cansado
nem melancólico, mas, sem mais nem
menos, de repente, tudo parece ter-se
tornado pouco interessante" (pág. 202).
Mas essa indiferença
não lhe embota a inquietação. Discute Bourget,
que vem encantando os literatos russos; estes são,
por sua vez, "mais estúpidos do que o leitor, seus
heróis são pálidos e insignificantes, e a vida, tratada por eles de modo negligente, é mesquinha e desinteressante" (pág. 214).
Tchekhov está organizando o seu terceiro livro
de contos (pág. 222), apadrinha o casamento de
uma bailarina (nada entende de balé, mas sabe
que nos entreatos "as bailarinas exalam
um cheiro semelhante ao dos cavalos"
(pág. 259). Visita a ilha-presídio de Sacalina ("um lugar de sofrimentos intoleráveis", pág. 280), sobre a qual escreverá.
"Por falar nisso, tive a pachorra de recensear toda a população de Sacalina.
Passei por todos os povoados, entrei em
todas as isbás, falei com todo mundo;
utilizei para o recenseamento um sistema de fichas em que já registrei cerca de
10 mil pessoas, entre forçados e colonos"
(pág. 318).
Na volta, constata, indignado, a "miséria gritante" de uma província sobre o
Pacífico ("um único homem honesto para 99 ladrões, os quais desonram o nome
russo", pág. 319) e, passando por Hong
Kong, anda de riquixá. Ouviu, então,
seus compatriotas, companheiros de viagem, "acusarem os ingleses de explorar
os estrangeiros". "Pensei: é verdade que
os ingleses exploram os chineses, os sipaios, os hindus, mas lhes dão estradas,
água encanada, museus, o cristianismo; vocês também exploram, mas o que dão
em troca?" (pág. 320).
Vagaroso e prolífico
Declararia, ainda -o que o tempo desmentiria-, não ter a intenção de casar-se. Reconhecerá, por fim, que é um escritor vagaroso, mas prolífico.
"Aos 40 anos terei escrito uma centena de livros, de modo que poderei abrir
uma livraria só com obras de minha autoria. Ter muitos livros e não ter mais nada é uma vergonha terrível" (pág. 349).
Não há, porém, amargura em Tchekhov. Quem é cético e tende ao humorismo, dificilmente adere à visão pessimista. As circunstâncias são-lhe até favoráveis. Os textos de seus dramas são bem
vendidos e a representação de "Ivánov",
cujo magistral retrato está na carta 33
(um culpado que não sabe qual é a sua
culpa), já lhe trouxera alguns rublos;
apesar da preguiça, o trabalho literário
triplicou-se agora. "Nas segundas, terças
e quartas, eu escrevo o livro sobre Sacalina, nos outros dias, fora o domingo, o romance e, aos domingos, os contos curtos. Trabalho com afinco, mas -ai de
mim- a família é grande e, escrevendo,
eu pareço um caranguejo dentro do cesto junto com os outros caranguejos: falta
espaço" (pág. 348).
Benedito Nunes é crítico e professor de literatura
na Universidade Federal do Pará, autor de "Hermenêutica e Poesia" (ed. da UFMG) e "Crivo de Papel" (ed. Ática), entre outros.
Cartas a Suvórin
(1886-1891)
416 págs., R$ 48,00
de Anton Tchekhov. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero
Freitas de Andrade. Edusp (av.
Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374, 6º andar, CEP 05508-900, SP, tel. 0/xx/11/3091-4008).
Cartas - Volume 2
488 págs., R$ 45,00 de Carl Gustav Jung. Trad. Edgard Orth. Ed. Vozes (r. Frei Luís, 100, CEP 25689-900, Petrópolis, RJ, tel. 0/xx/ 24/2233-9000).
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