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Um campo de desigualdades
"O Campesinato na História" e "Chiapas" reúnem ensaios que buscam recensear os problemas agrários desde a Grécia Antiga até a América Latina hoje
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Bernardo Mançano Fernandes
especial para a Folha
Desde a segunda metade do século 19, muitos cientistas elaboraram teorias e vaticinaram o
fim do campesinato por diversas vezes.
Primeiro foi a teoria da desintegração
do campesinato, em que, por meio da diferenciação social resultante da desigualdade gerada pelo desenvolvimento do
capitalismo, os camponeses seriam
transformados em trabalhadores assalariados e alguns poucos em capitalistas.
Depois foi a teoria da metamorfose, em
que os camponeses seriam transformados em agricultores familiares, este eufemismo que tem como pano de fundo a
tentativa de aliciamento de parte das organizações camponesas pelo capital.
A primeira teoria foi elaborada no final
do século 19 pelos intelectuais do então
socialismo emergente, que entendiam o
campesinato como um grupo social em
extinção tanto na sociedade capitalista
quanto na futura sociedade socialista,
onde seriam organizados como trabalhadores das cooperativas estatais coletivistas. A segunda teoria foi elaborada no
final do século 20 pelos intelectuais do
paradigma do capitalismo agrário, que
compreendem o campesinato como um
grupo social atrasado que, para continuar existindo, precisa aceitar a subordinação ao capital, metamorfoseando-se em
"agricultor familiar".
Em 1992, camponeses
de todos os continentes
organizaram a Via Campesina, que congrega organizações como a Confederação Camponesa da
França, da qual José Bové
é um dos membros, e o
MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais
Sem Terra), sem dúvida a
maior expressão camponesa no Brasil das últimas
décadas. A Via Campesina representa a falácia da
teoria da desintegração e é
um desafio aos teóricos
do capitalismo agrário, porque não desapareceram e recusam a ideologia da agricultura familiar. E uma das marcas históricas do campesinato é precisamente a
luta contra a subalternidade.
Para compreender melhor esse debate
secular, dois novos livros estão sendo
lançados. São "O Campesinato na História", publicado em co-edição pela Relume-Dumará e Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), e "Chiapas", co-edição da Paz e
Terra e o jornal "La Jornada", do México.
"O Campesinato na História" foi organizado pelo professor André Leonardo
Chevitarese. O livro é fruto de um encontro realizado em outubro de 2000 pelo
Laboratório de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
também contou com a participação de
pesquisadores da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, Universidade
Federal Fluminense, Universidade Federal do Espírito Santo, Universidade Metodista de São Paulo e Universidade Metodista de Piracicaba, bem como de representantes do MST e da CPT (Comissão Pastoral da Terra).
Trata-se de uma coletânea de textos selecionados por temas referentes às questões teóricas e metodológicas do campesinato, reunidos no debate a respeito da
identidade camponesa e de suas lutas de
resistência.
Aos estudiosos da questão agrária e a
outros interessados no assunto, o livro traz uma
importante contribuição
para a compreensão das
diferentes leituras do
campesinato na história.
Os autores expõem tanto
os resultados de suas pesquisas quanto as análises
dos estudos de outros
pesquisadores. Rompem
com os obstáculos disciplinares e cronológicos,
fazendo interagir conteúdos e realidades desde as
lutas dos camponeses no
século 5º a.C. até as reivindicações do MST.
É interessante observar
os conflitos entre latifundiários e camponeses no Baixo Império
Romano ou a luta pela terra na Grécia
Antiga, possibilitando uma leitura desses
enfrentamentos desde o século 8º a.C. ao
século 5º d.C.
Sem dúvida, os conteúdos dos artigos
têm em comum a marca da resistência
do campesinato. Em todas as épocas e lugares, em todas as sociedades -escravocrata, feudal ou capitalista-, os camponeses se mobilizaram pela conquista da
terra contra a expropriação e a exploração, mas sobretudo para continuarem
sendo produtores familiares. Essas questões podem ser compreendidas, por
exemplo, na leitura do texto "Os Camponeses na Idade Média - A Violência da
Jacquerie (Maio de 1358) na Visão de
Jean Froissart", de Ricardo da Costa. Ou
em "Inserção e Desagregação - Terra e
Sistema Republicano Romano", de Norma Musco Mendes.
Igualmente, no Brasil, essa marca está
presente, como demonstra o estudo de
Leonilde Servolo de Medeiros, que analisa as lutas dos trabalhadores rurais desde
o século 19 até hoje, quando a questão
agrária brasileira é intensificada por um
conjunto de políticas impostas pelo governo federal. Já Regina Novaes analisa
essa realidade por outro ângulo, o olhar
feminino das camponesas, relatando as
ações de Elizabeth Teixeira, Margarida
Maria Alves e Diolinda Alves de Souza,
em três tempos e três conceitos: camponesa, trabalhadora rural e sem-terra.
O outro livro, "Chiapas", organizado
por Alejandro Buenrostro y Arellano e
Ariovaldo Umbelino de Oliveira, é uma
reunião de artigos publicados principalmente no periódico "La Jornada", desde
janeiro de 1994 até janeiro de 2000. Os artigos foram escritos por diversos profissionais, entre eles o antropólogo Armando Bartra, da Unam (Universidade Nacional Autónoma de México), e a filósofa
Fernanda Navarro, da Universidade Mexicana de San Nicólas de Hidalgo, que
também é membro da Frente Zapatista
de Libertação Nacional.
A primeira parte do livro é composta
por comentários dos escritores José Saramago e Miguel Vázquez Montalbán,
do professor de teoria literária Antonio
Candido, do geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, do sociólogo José de
Souza Martins e do bispo dom Pedro Casaldáliga, em que apresentam suas leituras sobre o movimento indígena e campesino de Chiapas, iniciando o leitor ao
conjunto de artigos a seguir. Neles são
relatados e analisados os acontecimentos
e seus desdobramentos no conflito entre
os chiapanecos e o governo mexicano,
que ganhou repercussão internacional.
Na parte referente aos artigos jornalísticos, os capítulos foram organizados
por temas, facilitando a leitura e a compreensão do conflito de Chiapas. Desde a
origem histórica do movimento até as
formas de resistência construídas no enfrentamento com o modelo de desenvolvimento econômico do governo, discutindo a questão étnica, a autonomia política dos indígenas e campesinos e o questionamento da democracia mexicana.
Os autores fazem um intenso debate a
respeito dos acordos entre o governo e
Exército Zapatista de Libertação Nacional, com destaque para o acordo de San
Andrés e os limites políticos do governo
e do EZLN, que resultou em impasse,
permanecendo o conflito.
No último capítulo, são relatados diversos tipos de violência contra os zapatistas, principalmente a respeito do massacre de Acteal, em 22 de dezembro de
1997, quando 45 pessoas foram assassinadas por um grupo paramilitar. A violência contra os movimentos camponeses é, assim, mostrada como resultado de
sua não-aceitação pelos senhores da terra e do capital.
Da mesma forma, os camponeses dimensionaram as suas ações de resistência. A busca pela terra hoje faz parte da luta política pela transformação da sociedade, para que indígenas e camponeses sejam aceitos como qualquer outro grupo social. Quanto aos cientistas sociais e políticos, já vivemos o tempo em que é preciso declarar o fim do fim do campesinato, para que pesquisadores e governos possam elaborar e implantar políticas públicas que garantam a dignidade
dessas populações.
Bernardo Mançano Fernandes é professor de geografia da Universidade Estadual Paulista e autor de "A Formação do MST no Brasil" (ed. Vozes),
entre outros livros.
O Campesinato
na História
302 págs., R$ 32,00 André Leonardo Chevitarese
(org). Faperj/ed. Relume-Dumará (travessa Juraci, 37, CEP
21020-220, RJ, tel. 0/xx/21/2564-6869).
Chiapas
380 págs., R$ 30,00 Alejandro Buenrostro y Arellano e Ariovaldo Umbelino de Oliveira (orgs.). "La Jornada"/ed.
Paz e Terra (rua do Triunfo, 177,
CEP 01212-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3337-8399).
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