São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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A atriz e jornalista, que integrou o júri da 26ª Mostra Internacional de SP, fala das tensões entre diversão e engajamento nos filmes iranianos

A ferramenta das imagens

A afegã Nelofer Pazira, que integrou o júri da 26ª Mostra Internacional de Cinema de SP e atuou no filme "O Caminho para Candahar", de Mohsen Makhmalbaf, concedeu uma entrevista logo após a premiação do filme "Exílio no Iraque", do diretor iraniano Bahman Ghobadi. Ela falou da atual situação política e social do Irã, sobre a recepção dos filmes iranianos em países ocidentais e sobre religião.

Esta é sua segunda passagem por São Paulo?
Sim, da primeira vez estive apenas por 24 horas e logo retornei para o Canadá. Foi no ano passado, na 25ª Mostra Internacional de Cinema, quando vim lançar o filme "O Caminho para Candahar". Agora tive mais tempo, sete dias, e pude caminhar um pouco pelas ruas e sentir mais as pessoas, embora tenha passado boa parte deste tempo dentro do cinema.
"Exílio no Iraque" ganhou o prêmio de melhor filme de ficção na 26ª Mostra. Como foi a escolha? Em recente entrevista, Ghobadi havia dito que "a câmera é uma arma com forte poder de influência". Você entende a crítica social no cinema como uma arma política?
Foi uma seleção difícil, pois bons filmes estavam competindo, mas, no fim do dia, uma discussão entre os sete membros do júri chegou ao nome de Ghobadi. Sou muito resistente em usar um vocabulário militar para descrever algo a ver com cultura e arte. Pessoalmente não acredito em violência e no poder militar. Arte e cinema, não apenas a câmera, são ferramentas poderosas, especialmente no mundo de hoje. Em países de tradições milenares, como o Afeganistão, onde existe um alto índice de analfabetismo, cinema é uma ferramenta de influência poderosa (eu não uso a palavra arma). Não acredito no cinema apenas como entretenimento e acho que um diretor deve usar essa ferramenta (câmera e roteiro) tendo em vista o seu poder de influenciar reformas políticas e sociais.
Os filmes pós-revolução islâmica podem ser entendidos como uma janela para entender a sociedade iraniana?
Absolutamente. O Irã teve uma revolução religiosa, e antes da revolução se produziam alguns filmes, vários deles de entretenimento e alguns mais sérios, mas não eram muitos. O Irã produz 70 filmes por ano, alguns de entretenimento e outros com uma séria consciência social e autocrítica, introduzindo o país ao mundo exterior, observando-o e contribuindo para mudar a imagem do país no exterior.
Quando filmes iranianos começaram a chegar ao Ocidente, as pessoas assistiam e ficavam atônitas. Atônitas por conhecerem nuanças da cultura política e social do Irã, por se aproximarem da cultura local, das crenças antigas e dos desejos atuais das pessoas (uma mulher é proibida de cantar, mas existe o desejo de que essa questão cultural mude). Surpresas também por identificar as difíceis e limitadas condições de produção dos filmes.
Ao mesmo tempo em que são locais, os filmes iranianos pós-revolucionários são também globais: uma simples história sobre um grupo de nômades num lugar que ninguém conhece se torna universal.
Em "O Caminho para Candahar", Mohsen Makhmalbaf identifica as atrocidades que o Taleban fez com o povo afegão e, em "Alfabeto Afegão", aponta a educação como único caminho para encarar os reais problemas políticos e sociais. Como você participou desse processo?
Percebemos durante a filmagem de "O Caminho para Candahar", quando estávamos na fronteira do Afeganistão, numa aldeia de refugiados, que lá não havia escolas, eles não tinham acesso a nada. Crianças brincavam na poeira, crescendo sem ter idéia do que aconteceria no futuro. Então iniciamos aulas de alfabetização nessa aldeia e notamos em um curto período de tempo que as crianças estavam excitadas e que até mesmo as mulheres estavam interessadas. Acredito que educação seja um meio de as pessoas escolherem por elas mesmas como querem viver. Acredito em um cinema responsável, por isso estou envolvida neste projeto educacional no Afeganistão com a Makhmalbaf Film House.
Quando as pessoas perguntam qual a solução para o Taleban, digo que certamente não passa por operações militares, não passa por destruir pessoas. Educar é ajudar pessoas a entender outras pessoas.
Como os valores islâmicos, tão presentes no cinema popular iraniano, são representados no cinema de arte, como no trabalho de Makhmalbaf?
Mensagens islâmicas são parte de um cinema de arte que se apropria de valores culturais milenares e de diversos aspectos da cultura islâmica, como religião, leis e costumes. Esses aspectos estão absolutamente relacionados. A obra de Makhmalbaf é bastante crítica à normatização da religião, não necessariamente uma crítica ao islã. Em "Alfabeto Afegão" e em "Candahar" há planos muito chocantes sobre o ensino dogmático da religião, em que as crianças apenas memorizam o Alcorão, sem entendê-lo. Em "Exílio no Iraque", saudações como "olá" se tornam uma frase e gesto islâmico como "a paz esteja com você". Mensagens islâmicas fazem parte desse cinema, assim como pedidos de reformas, de mudanças, embasados em um forte movimento político que existe hoje no Irã.
Você acredita que as regras islâmicas do governo estão menos rígidas com as políticas de Khatami [atual presidente do Irã]?
O Irã está passando por um incrível período de transformação. Estive lá antes das eleições de Khatami e havia carros de polícia nas esquinas de cada rua checando como as pessoas estavam vestidas e mantendo tudo sob controle. Estava caminhando com uma amiga e os policiais vieram e perguntaram: qual a relação entre vocês? Havia uma forte interferência na vida cotidiana de cada indivíduo, na privacidade individual. Depois que Khatami assumiu, retornei imediatamente ao Irã e notei que a primeira coisa que aconteceu foi os carros de polícia serem tirados das ruas. Sinal de mudanças. Os iranianos estão frustrados porque desejavam que as coisas acontecessem rápido, é normal, todos o fazemos. Escolhemos um presidente, ele é um reformista e sabe que deve haver um equilíbrio, ou a revolução islâmica se tornaria um caos. Seu grupo político determina algumas prioridades, dá alguns passos para a frente, mas logo é puxado para trás pelos radicais, e, quando você volta para trás, demora um tempo para seguir adiante.
É um processo demorado. Em comparação ao resto do mundo islâmico, penso que o Irã está ao menos 50 anos à frente em termos de reformas, movimentos e avanços sociais. Essas reformas são muito difíceis, levam séculos para acontecer, até mesmo no Ocidente. A democracia no Ocidente também não surgiu da noite para o dia.


Alessandra Meleiro é doutoranda na Escola de Comunicação e Artes da USP e professora da Universidade Metodista (SP).


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