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Representações da água no clássico "Em Busca do Tempo Perdido" vão da
importância da paisagem marítima na constituição dos personagens até a
linguagem fluida e caudalosa
A IMAGINAÇÃO MATERIAL EM PROUST
Divulgação
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Cena de "O Tempo Redescoberto" (1999), filme de Raoul Ruiz baseado na obra de Proust
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Raquel de Almeida Prado
especial para a Folha
Em "A Água e os Sonhos" [ed. Martins Fontes], Bachelard distingue
dois tipos de imaginação, uma puramente formal e outra, mais profunda: a imaginação material. Elas trabalham juntas, mas o valor da obra literária
está, mais do que nos arabescos superficiais próprios da forma, na profunda
adesão do poeta a um elemento privilegiado de identificação maior com um
dos quatro elementos -água, terra, fogo
e ar- que estão na base de mitos e devaneios arcaicos que determinam até hoje,
segundo ele, a imaginação individual.
O "psiquismo hidrante" seria um tipo
de imaginação material capaz de ver sob
as imagens superficiais da água "uma série de imagens cada vez mais profundas,
cada vez mais tenazes", instaurando um
"tipo de destino": "Um destino essencial
que metamorfoseia ininterruptamente a
substância do ser". Com efeito, na obra
de Marcel Proust (1871-1922), é impossível não perceber a riqueza das imagens
da água, de Balbec a Veneza, passando
pelo Vivonne e o Loire, a importância da
paisagem marítima na constituição dos
personagens e até na linguagem fluida,
caudalosa, que caracteriza a escrita de
Proust.
História de Marcel
Mas, em nossa
tentativa (não empreendida pelo próprio
Bachelard, que não dava a devida importância à obra de Proust) de demonstrar
como a imaginação material percorre a
obra de Proust, é preciso começar de
uma confissão do narrador nas últimas
páginas de "O Tempo Redescoberto": a
de que Swann lhe teria dado a matéria de
sua experiência e de sua obra. O narrador se refere aí à história, à aventura de
Marcel, que vai ser definida por Swann
quando este lhe sugere ir a Balbec, onde
Marcel encontrará Albertine.
Em outro plano, a história de Swann
com Odette, que aparece no primeiro volume da obra, aparentemente independente, único trecho narrado na terceira
pessoa, vai se revelar o modelo da história de Marcel com Albertine: ciúmes,
desconfianças, suspeitas de bissexualismo etc. Mas um analista da imaginação
material deve buscar por detrás disso o
que significa, em profundidade, essa matéria que o narrador herda de Swann. E
aí, o nome de Swann não poderia ser interpretado senão da maneira mais óbvia:
o nome de um homem-cisne.
Pescando em águas bachelardianas, já
se destacam aí alguns dos temas centrais
da busca: o da ação do tempo, a importância da figura da mãe graças ao caráter
profundamente materno das águas e a
do homossexualismo, através da imagem hermafrodita do cisne. Voltando à
matéria da obra, isto é, à aventura pessoal do narrador, percebe-se que ela se
desenrola exatamente entre Balbec e Veneza. Balbec, onde ele conhece Albertine,
e Veneza, onde ele a esquece.
Entre esses dois cenários, as águas vão
trazer "a ligação contínua das imagens",
sem a qual o mundo "se dispersa em coisas disparatadas, em sólidos imóveis e
inertes, em objetos estranhos a nós mesmos". Graças a essa ligação, é possível
perceber uma continuidade e maturação
das águas claras de Balbec às águas profundas de Veneza.
Bachelard destaca o papel do amor filial na base de toda valorização da natureza. Segundo ele, a natureza é uma projeção da mãe. Assim, toda imaginação
material fortemente marcada pelas
águas teria como base o amor pela mãe,
sobre o qual outros amores virão se
apoiar. A importância doentia da imagem da mãe para Marcel fica clara desde
o início na famosa cena do beijo de boa-noite, em que o narrador, contrariado
pela visita de Swann, inventa um estratagema para forçá-la a vir. O próprio autor
faz então a ligação entre a sua angústia
nesse momento e a angústia de Swann,
resultado de um amor mal correspondido por Odette, modelo das relações amorosas do narrador no futuro, primeiro
com a própria filha de Swann, num intricado jogo de reflexos, e depois com Albertine -diante da qual "todos os seus
amores foram apenas ensaios".
Mãe e avó
Essa angústia está predestinada ao amor: enquanto isso, ela flutua
"a serviço... ora da ternura filial ou da
amizade por um coleguinha". E a escolha
desse verbo revela o elemento em que o
personagem parece se mover, elemento
que vai dar a unidade material, de que fala Bachelard, aos seus sonhos e devaneios, base de sua obra. "A segunda mulher também vai ser projetada na natureza ao lado da mãe-paisagem." Depois de
tanto sonhar com Balbec, Marcel finalmente vai lá passar férias com sua avó.
Veremos que, tanto em Balbec (nas duas
estadias) quanto em Veneza, ele vai
acompanhado ora de sua avó, ora de sua
mãe, duas personagens que vão se fundindo pouco a pouco, sobretudo após a
morte da avó, quando, justamente em
Balbec, sua mãe se torna cada vez mais
semelhante à morta.
Nessa viagem a Balbec, numa parada
do trem, a primeira figura feminina a
despertar o desejo de Marcel é uma camponesa que surge à beira da torrente, trazendo um jarro de leite. Aqui a imagem
nutridora, que Bachelard detecta em certos devaneios diante da água, jorra "no
fundo da garganta", entre duas montanhas. A moça surge trazendo o leite e, segundo o princípio da imaginação material, montanhas transformam-se em
seios, a paisagem se humaniza, é a paisagem-mãe diante da qual Marcel sente
"esse desejo de viver que renasce em nós
a cada vez que tomamos consciência da
beleza e da felicidade". A camponesa desaparece, o trem parte, mas a imagem
não desvanece tão facilmente: mais tarde, em Balbec, uma outra leiteira vai, en
passant, despertar a fantasia de Marcel.
Paisagem imaginária
Mas antes quem o seduz entre os frequentadores
do hotel em que se hospeda é uma Srta.
de Stermaria, de "belo rosto pálido e azulado", cuja aristocracia parece acrescentar à sua "tez composta de sucos escolhidos, o sabor de uma fruta exótica ou de
um vinho famoso". Aqui, a água ("pálida
e azulada") se transforma em vinho, a
moça do leite parece ter completado a
transição entre a mãe-paisagem e a mulher-paisagem de que fala Bachelard.
Em Stermaria, Marcel reencontra a rosa sensual "que derramava seu encarnado no coração das ninféias brancas do
Vivonne", rio no qual se debruçara para
sonhar no caminho de Guermantes. E
sobre os olhos da Srta. de Stermaria ele
busca essa paisagem "mais útil para a
imaginação que o prazer sensual". Sobre
o fundo do Vivonne sobrepõe-se a paisagem imaginária da Bretanha da Srta. de
Stermaria, "onde luziam mais suavemente acima da água escurecida as flores
rosas das urzes...". Dessa superposição
surge o tema de Narciso, ou melhor, de
um narcisismo generalizado que transforma todos os seres em flores, que vai
dar o título ao romance e que contém
também a idéia de uma "revelação de sua
dupla potência viril e feminina", revelação que vai se completar através de Albertine, uma das raparigas em flor.
Como círculos provocados em volta de
uma pedra caindo na água, os personagens não desaparecem sem desdobrar-se
nem aparecem sem terem sido anunciados. Um pouco antes de encontrar o "pequeno bando" de Albertine, Marcel cruza com um grupo de moças do vilarejo,
dominado por uma delas, a que segura
um pote com peixes. Esta o atrai, sua pele, seu corpo, mas também seu "ser interior" fechado, apesar de ter percebido
sua "própria imagem se refletir furtivamente no espelho de seu olhar".
Ele usa um estratagema para forçá-la a
"lembrar-se de mim até o dia em que poderia revê-la". Mais uma vez o vemos
procurar o seu reflexo no olhar da moça,
cujo "ser interior" não passa de um depositário dele mesmo, como Albertine,
que um dia irá "conter todas as coisas",
como um "vaso", se interpondo entre ele
e o mundo. Finalmente o "pequeno bando" surge, tão diferente de todo o mundo
em Balbec como um "bando de gaivotas... na praia". Através delas se propaga
"uma flutuação harmoniosa, a translação contínua de uma beleza fluida, coletiva e móvel". Angústia ou beleza, tudo
parece flutuar para Marcel.
A "graciosa mitologia oceânica" se dissipa quando Marcel, após conhecê-las
melhor, reconhece nelas apenas garotinhas burguesas de "honestos princípios"
e não mais "as mesmas virgens impiedosas e sensuais que tinha visto, como num
afresco, desfilando frente ao mar". Aí, o
narrador parece consciente do fenômeno que Bachelard atribui ao "complexo
de Nausicaa": exemplo do que ele chama
de complexo de cultura, caracterizado
por uma poesia artificial dos reflexos,
própria do burguês, que leva ao campo
suas lembranças colegiais.
De fato, o narrador se sente, nessas tardes, entre sanduíches e adivinhas, como
"esses pintores que, buscando a grandeza da vida antiga na vida moderna, concedem a uma mulher que corta uma
unha do pé a nobreza...". Pouco a pouco,
a figura de Albertine vai se destacando
do pequeno grupo, ainda que, diante da
Albertine real, Marcel sempre sinta uma
certa decepção e busque nas outras raparigas a magia "mais útil para a imaginação", tentando eleger outra musa, que
também lhe escapa entre os dedos, com a
fluidez que caracteriza as ondinas.
"Diante da medíocre e tocante Albertine
com quem eu falara, estava vendo a misteriosa Albertine diante do mar."
Longe de Balbec, quando ela reaparece
mais acessível, já não tem o mesmo encanto. Neste entretempo, Marcel já se
apaixonara pela princesa de Guermantes, ao vê-la surgir na Ópera, como uma
grande deusa das águas, coberta de pérolas e conchas brancas. Há também uma
possibilidade de romance com a já conhecida Srta. de Stermaria, que ele gostaria de levar à ilha do Bosque, cuja neblina
poderia vesti-la como um traje natural. A
segunda temporada em Balbec inaugura
uma nova etapa nessa relação, quando
Marcel, ao ver Albertine dançando com
sua amiga Andrée, começa a suspeitá-la
de "costumes gomorrianos" . A partir
daí uma curiosidade dolorosa vai pouco
a pouco tornar-se obsessão, até que a
descoberta de sua amizade com a Srta.
Vinteuil o decide a levá-la de Balbec.
Ambivalência sedutora
Finalmente Marcel parece reencontrar em Albertine e suas novas amigas as "virgens
impiedosas e sensuais..." que o seduziram na primeira temporada de Balbec,
mas cujo mistério agora tanto atrai
quanto assusta. A ambivalência sedutora
das raparigas em flor torna-se agora, em
Albertine, perigosamente ameaçadora e
é preciso aprisioná-la (ele a leva para casa em Paris e passa a controlá-la), para
ter certeza de que "ela não fará nada que
ele não faça" -ou que ele não fará nada
que ela faça, diria o amador de psicanálise. As águas puras e floridas de sua infância em Balbec parecem ter se contaminado. As flores agora são hermafroditas, e
as medusas, antes repugnantes, "não
são, no veludo transparente de suas pétalas, como que as malvas orquídeas do
mar?". O tempo das águas primaveris
passou e o narrador começa a descobrir
que "no fundo da matéria cresce uma vegetação escura; na noite da matéria florescem flores negras. Elas já têm o seu veludo e a fórmula de seu perfume", como
diz Bachelard.
A presença de Albertine agora só pode
lhe trazer paz quando ela não pode se refletir em seus olhos -quando ela dorme, por exemplo, e ele embarca no seu
sono "sentindo que seu sono estava no
seu auge e não se chocaria nos recifes da
consciência agora recobertos pela maré
cheia do sono profundo...". Mas, curiosamente, só quando suas suspeitas recrudescem é que ele deseja retê-la, quando ela parece sob controle, perde o interesse. Essa relação narcísica que o narrador mantém com Albertine contém sem
dúvida a ambivalência profunda de que
fala Bachelard, "que passou dos traços
masoquistas para os traços sádicos". Se
ela é a Prisioneira, ele também se reconhece prisioneiro dela. Tão prisioneiro
que não pode realizar o seu antigo sonho
de ir a Veneza.
No entanto Veneza sempre atraiu Albertine, e, numa das tentativas de prendê-la através de presentes, Marcel lhe dá
um dos famosos vestidos Fortuny, que
reproduz os antigos brocados venezianos. Seus reflexos de azul e ouro fazem-no sentir o peso de sua escravidão, enquanto que Albertine, cujas vestes "o
vento do mar não mais inflava", era também uma "escrava incômoda", da qual
gostaria de se livrar. Albertine, com seu
vestido Fortuny de ornamentos árabes,
com pássaros orientais que significam
alternativamente a morte e a vida, seus
reflexos da água pesada de Veneza, ou
com "a cabeleira escorrendo ao longo de
seu rosto rosa... [que] causava o mesmo
efeito de perspectiva que aquelas árvores
lunares esguias e pálidas que se avistam
bem eretas no fundo dos quadros
rafaelescos de Elstir...", parece já estar
cumprindo seu destino de Ofélia.
Quando ela finalmente foge, Marcel faz
de tudo para fazê-la voltar, e a notícia de
sua morte chega de maneira tão surpreendente e inesperada que Marcel não
consegue aceitá-la. Ainda prisioneiro de
seu ciúme, ele descobre os jogos eróticos
de Albertine com uma jovem lavadeira e
suas amigas à beira do Loire. Essa imagem o faz lembrar duas pinturas de Elstir
de mulheres nuas numa paisagem bucólica, na qual a coxa de uma delas parecia
o pescoço de um cisne. "Então eu nem
via mais uma coxa, mas o pescoço atrevido de um cisne, como aquele que num
esboço fremente busca a boca de uma
Leda..." E a marca do cisne -animal
hermafrodita- desde o início presente
na matéria de sua experiência, que lhe vinha de Swann, se torna visível.
Durante muito tempo ainda, Marcel
vive torturado pelo ciúme e aos poucos
Albertine vai se tornando indiferente.
Essa indiferença só se torna absoluta em
Veneza. Só em Balbec ele fora capaz de
sentir a morte de sua avó e só em Veneza
ele aceita a morte de Albertine, como se
apenas as águas pudessem levá-las definitivamente. Segundo Bachelard, "a despedida à beira do mar é ao mesmo tempo a mais dilacerante e a mais literária
das despedidas", pois a água, substância
de vida, é também substância de morte
para o devaneio ambivalente -como os
pássaros orientais do vestido veneziano
de Albertine.
Como Bachelard, o narrador pode compreender que "o fio de Ariadne é o fio do discurso; é da ordem do sonho narrado"
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A essa idéia de morte nas águas Bachelard associa dois "complexos": o de Caronte e o de Ofélia. Segundo ele, a água é
a pátria das ninfas vivas e também das
ninfas mortas, o elemento da morte jovem e bela, da morte florida. Na definição desse seu conceito de "complexo", as
imagens que se aglutinam em torno de
um tipo de devaneio tornam-se irreconhecíveis na sua novidade, mas um único traço basta para revelá-lo inteiramente. A morte da rapariga em flor, sentida à
beira dos canais de Veneza, parece revelar um desses complexos.
Mas se, do ponto de vista da história,
Veneza é o cenário em que se encerra a
aventura amorosa do narrador, do ponto de vista da imaginação material um
novo elemento vai definitivamente se
combinar com as águas, trazendo consigo um novo mundo de imagens. Bachelard acredita que a noção de "combinação" de elementos é necessária à imaginação material, apesar da unidade fundamental de um desses elementos impregnar tudo. Essa combinação só pode
se dar entre dois elementos, como um
casamento; e, se ela se dá entre duas matérias de tendência feminina, uma deve
se masculinizar para dominar a outra.
Em Veneza, as imagens da pedra ("palácios de porfírio e jaspe", "água de safira", "pavimento ensolarado" e sobretudo mármore: colunatas, paredes, mosaicos de mármore) remetem ao tipo de devaneio que Bachelard associa à terra e os
devaneios da vontade. O elemento terrestre já tivera mais importância nos devaneios infantis do narrador em Combray, nos seus passeios pelo campo, no
seu fascínio pelas pedras seculares da
igreja de Combray, no charme de Gilberte, seu primeiro amor, imaginada sempre diante das catedrais que costumava
visitar com Bergotte.
Milagre de criação
A partir de Balbec, as águas parecem carregar tudo
(permitindo, no entanto, que, às vezes,
Albertine seja transformada em deusa de
mármore). Mas, ao perder aos poucos
sua transparência primaveril, elas parecem, à beira do Adriático, cristalizar-se
em "formas inumeráveis tênues e minuciosas", e belas praças aparecem, como
num sonho, num "pedaço sombrio de
cristalização veneziana". As mocinhas
sedutoras não são mais burguesinhas desocupadas, mas "as enfiadoras de pérolas, as trabalhadoras do vidro ou das rendas", operárias que parecem transformar a água em vidro, a espuma em pérolas ou renda. "As igrejas brotavam da
água transformada em velho bairro populoso": o poder de metamorfose que
Bachelard atribui às águas aparece aqui
não mais no sentido de um "mistério",
mas de um "milagre", um milagre de
criação da natureza, milagre de criação
que se multiplica a cada esquina, em que,
de repente, uma igreja aparece como "o
termo de um trajeto sobre a água marinha e primaveril" ou as "magníficas escadarias externas dos palácios" cobertas
e descobertas sucessivamente pela maré.
Mas a partida da mãe interrompe o entusiasmo desses devaneios, Veneza deixa
de ser Veneza. A água aparece como
"combinação de hidrogênio e de azoto,
eterna, cega, anterior e exterior à Veneza", como se fosse a presença da mãe a
dar unidade material à água. Reencontramos, no final, a profunda identidade
do elemento com a imagem da mãe. E as
últimas lembranças, despertadas pela
contemplação melancólica dos canais,
são de uma cena de infância em que o
narrador acompanhara a mãe nos banhos Deligny. Pesadelo labiríntico que
Bachelard associa ao sofrimento primeiro, o sofrimento da infância, a angústia
arcaica do "ser perdido".
Assim, voltamos à angústia de Marcel,
acordando num quarto estranho sem saber onde está ou esperando, no corredor,
que sua mãe suba para lhe dizer boa noite. Mas, como Bachelard, o narrador pode compreender que "o fio de Ariadne é
o fio do discurso. É da ordem do sonho
narrado. É um fio de retorno". Retorno
em busca daquilo que foi perdido.
Esse papel emoliente da água, nós o
reencontramos no episódio fundamental da busca, no qual o narrador sente a
"madeleine" que ele mergulhara no chá
desfazendo-se em sua boca. Essa experiência devolve fluidez à sua memória,
despertando um fluxo de reminiscência.
Por outro lado, já vimos o poder aglomerante da água, combinado com a "imaginação ativista" capaz de transformar
água em pedra, no episódio de Veneza,
em que o contraste entre as águas correntes que tudo levam, a pedra secular,
sólida e resistente, parece sugerir o valor
do que "dura" ou se eterniza.
Se esse espetáculo ainda não é suficiente para levar o narrador a se dedicar a sua
obra, algum tempo mais tarde, ao tropeçar numa pedra de calçamento, dirigindo-se para uma recepção, a experiência
da "madeleine" se repete, e são justamente as lembranças de Veneza que vêm
à tona, junto com a sensação do poder de
realizar uma obra. Sua obra, que ele gostaria de construir como uma catedral, ele
a construirá a partir das ondas de sua
memória, assim como Veneza lhe parecera erguer-se como de uma cristalização de suas próprias águas.
Nota
"Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust,
pode ser encontrado em português em edições
da Globo (0/xx/11/3362-2000) e Ediouro (0/xx/21/2260-6122).
Raquel de Almeida Prado é mestre em filosofia e
doutora em teoria literária e literatura comparada
pela USP. É autora de "Perversão da Retórica, Retórica da Perversão - Moralidade e Forma Literária
em Ligações Perigosas" (ed. 34) e de "A Jornada e
a Clausura - A Figura do Indivíduo no Romance Filosófico" (Ateliê Editorial, no prelo).
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