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Ponto de fuga
Joel Robine - 15.out.2002/France Presse
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"Baker's Children" (1809), tela de Constable no Grand Palais, em Paris |
A escolha de Lucian Freud
Faz tempo que uma grande exposição não era consagrada a Constable (1776-1837). A última de fato importante deve ter sido em 1974, na Tate Gallery, de Londres.
Paris não via um conjunto significativo de suas obras
desde... 1824, quando o pintor inglês abalou o meio artístico da França e provocou uma renovação nas artes
modernas. Seu exemplo removeu velhas convenções,
abrindo caminhos novos para Corot, anunciando a escola de Barbizon, Courbet e os impressionistas.
A mostra que se encerrou há pouco, no Grand Palais,
em Paris, permitiu um balanço dessa obra, ao mesmo
tempo calma e intensa. Ela teve uma curadoria singular:
em vez de especialistas doutos, saídos das universidades
ou dos museus, Lucian Freud, artista contemporâneo,
neto de Sigmund, foi encarregado de fazer a escolha das
obras. Freud é um pintor do corpo humano, sobretudo
nu, monumental e sem idealizações; Constable é, por
excelência, o artista das paisagens verdes e úmidas de
seu Suffolk natal. Nada os aproxima. Lucian Freud conta que, uma vez, tentou se inspirar num pequeno quadro de Constable, cujo tema é um tronco de árvore no
primeiro plano. Mas seu tronco saía sempre banal e
sem vida, pífio diante do de Constable. Então, em vez de
árvore, Lucian Freud pintou uma mulher nua, de pé,
vista de perto. Dois mundos picturais que divergem. Isso não impediu a grande paixão de Lucian Freud por
Constable. Ela justificou a curadoria da mostra.
Estratos - "Constable, a Escolha de Lucian Freud", título da exposição em Paris, foi uma verdadeira retrospectiva do grande paisagista. Ela pôs em evidência a gênese
de vários quadros essenciais, graças aos desenhos, estudos e aos célebres esboços que Constable desenvolvia
nas mesmas dimensões das telas definitivas. Estavam
presentes os retratos, que são raros, às vezes bisonhos,
às vezes (como o de Jane Anne Mason) admiráveis como um Goya. Lucian Freud eliminou os admiráveis estudos de nuvens, que ele considera meros exercícios: foi
a lacuna maior da mostra.
Pintura - Entre os modernos, entre aqueles artistas radicais que, de 1900 a 1920, subverteram e explodiram
em criações de energia genial jamais atingida depois,
Francis Picabia (1879-1953) ficou mais na sombra. Vinculou-se às posições extremas do dadaísmo e pensava
seriamente que a arte perdera seu sentido: "Nós brincamos talvez com uma morta", escreveu. Um de seus aforismos era este: "A Mentira é a mais bela coisa falsa e
constitui o próprio objetivo da arte". Sentiu, como poucos, o quanto as práticas artísticas encontravam-se em
crise no século 20.
Ocorre que Picabia foi tomado obsessivamente pela
arte da pintura, possuído por ela de modo irremediável.
Daí o paradoxo: sua antiarte é a mais pictural que existe.
Nela se encontram, em concomitância que desnorteia
os raciocínios críticos mais ou menos convencionais,
quadros de um vigor e de uma qualidade muito raros,
ao lado de gestos provocadores. Nos últimos anos de
sua vida, desdenhando os critérios modernos mais fáceis, volta-se para uma figuração ostensiva, sem deixar
de explorar universos visuais abstratos. Põe em xeque a
arte pela antiarte, e a antiarte pela arte. Não se trata de
um caminho muito cômodo. Disso vem, certamente,
seu ostracismo relativo perante a crítica e o público.
Percurso - O Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris propõe, atualmente, uma retrospectiva muito completa de Picabia. Ela provoca choques sucessivos: impactos causados pela beleza das grandes telas pintadas a
partir de 1910; interrogações vivas e irônicas nas obras
dadaístas, mas também nas mulheres espanholas, falsamente "clássicas", que glosam Ingres e Botticelli; erotismo sincero nos nus, tão belos e tão kitsch, pintados nos
anos 1940, aos quais se seguem abstrações feitas de signos sexuados, ricas de matéria. As últimas são apenas
texturas brilhantes e ásperas, onde pequenos pontos
coloridos se perdem.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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