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"Comida - Uma História" e "Seis Mil Anos de Pão" transitam pela sociologia,
nutrição, química, agronomia e religião para traçar um panorama da alimentação
Oito revoluções boca a boca
Leopoldo Waizbort
especial para a Folha
Como todos sabem, não há tema
mais importante para o ser humano do que a comida, podendo
a humanidade dividir-se entre os
que comem para viver e os que vivem para comer. Mas, desde o princípio, essa
saudável e feliz alternativa foi corroída
pela fome, e não há história da alimentação que não seja, sobretudo, uma história da fome: história dos homens que dependem das dádivas de uma natureza
boa ou má, história dos homens que dependem dos modos como eles mesmos
distribuem suas riquezas, isto é, seu alimento, seu pão. De todos os modos, uma
história da dominação da natureza e da
dominação dos homens.
Tanto "Comida - Uma História", de
Felipe Fernández-Armesto, como "Seis
Mil Anos de Pão", de Heinrich Eduard
Jacob, adotam a perspectiva de uma história cultural para falar da comida e do
pão, mobilizando dados e incorporando
discussões advindas de variados domínios: história, economia, antropologia,
sociologia, biologia, nutrição, química,
agronomia, tecnologia, religião etc.
Fernández-Armesto, historiador espanhol radicado na Inglaterra, propõe a
idéia de oito grandes "revoluções", por
meio das quais seria possível contar a
história da comida articulada à história
geral da civilização. A primeira revolução é a invenção do cozimento: diz respeito à domesticação do fogo e seu papel
no processo de civilização, à diferença do
cru e do cozido, do vivo e do morto ("no
repertório da cozinha ocidental moderna, a ostra é a única coisa que comemos
crua e ainda viva").
Além disso, destaca as inovações tecnológicas nas formas de cozimento (assado, grelhado, frito, cozido, fervido), de
dominar o fogo e nas ferramentas culinárias, desenvolvimentos que rebatem
nas formas de organização social. E, em
contrapartida a esse aspecto civilizacional, destaca a nostalgia do "natural" na
alimentação moderna. A segunda revolução trata da dimensão simbólica associada à comida na sua produção, preparação, distribuição e consumo. Mulheres
e homens não comem simplesmente,
mas também atribuem significados ao
que comem; dietas e hábitos alimentares
são cultura, referem-se ao sagrado e ao
profano; as comidas são puras ou impuras, saudáveis ou prejudiciais, benfazejas, divinas ou demoníacas.
A terceira revolução aborda a seleção,
domesticação e criação dos animais comestíveis, desde as primevas criações de
lesmas até as atuais fazendas de criação
de animais selvagens e exóticos. Indagando como e por que o homem cria outros animais para comer, o autor passa
em revista a velha discussão de coleta, caça e pastoreio, ressaltando o papel importantíssimo da caça de peixes (e, atualmente, de sua criação).
A quarta revolução diz respeito à agricultura, à utilização da vida vegetal como
alimento. Embora a passagem da coleta
para o cultivo não tenha representado
imediatamente grandes vantagens, "a
longo prazo a contribuição da agricultura para a mudança do mundo foi maior
do que qualquer outra inovação humana". Ademais, com o tempo, a seleção e
manipulação artificiais ganharam cada
vez mais importância, produzindo novas
espécies, de sorte que hoje 90% da alimentação mundial provém de plantas.
Fernández-Armesto dá grande destaque
à história do desenvolvimento dos grandes cereais (centeio, cevada, trigo, milho,
arroz, milhete), sem contudo esquecer a
importância dos tubérculos.
A quinta revolução destaca a alimentação como força e fator de diferenciação
social: comer diferentemente distingue
as pessoas, e ricos e pobres encontram na
comida pontos de contato e separação. A
distinção opera não só segundo o critério
da quantidade (uns têm muita comida,
outros não têm), mas também da qualidade (uns comem comidas raras e refinadas, se tornam gourmets; cria-se a
"haute cuisine"), para não falar dos bons
modos ao comer.
A sexta é o comércio de longa distância, promotor de intercâmbios materiais
e culturais: da dificuldade em comer o
que os outros comem, da distinção em
poder ter ingredientes exóticos e saber
apreciá-los. Ao mesmo tempo, evidencia
que as culinárias supostamente nacionais são de fato muito pouco nativas,
fundindo elementos variados e estranhos. Centro e periferia, império e pós-colonialismo, senhores e escravos, exilados, migrantes e viajantes construíram e
diluíram continuamente hábitos e privilégios alimentares.
A sétima revolução é dedicada aos intercâmbios ecológicos: "Continua sendo
inquestionável que o grande intercâmbio de biota através dos oceanos nos últimos 500 anos constituiu a maior intervenção humana na história ambiental
desde o começo da domesticação das espécies". Basta imaginar a Itália sem o
molho de tomate, cujo ingrediente provém da América. Mas, para além do pitoresco, há a propagação dos grandes cereais que, como se viu, alimentam o
mundo (isto é, sua parcela que é alimentada). A oitava e última revolução trata
da industrialização do mundo e da alimentação desde o século 19: os alimentos
são produzidos, processados e fornecidos industrialmente.
Sobretudo nesse tópico se evidencia a
perspectiva neoconservadora do autor,
no seu diagnóstico da sociedade pós-industrial como anômica, na qual as pessoas comem fast food e com isso se tornam incivilizadas, abandonando a calma
e tranqüila refeição caseira e as formas
tradicionais de vida familiar burguesa.
H.E. Jacob, por sua vez, escreveu uma
história cultural do pão na qual pretende
abordar tanto os seus significados simbólicos como a sua descoberta, produção e distribuição da Pré-História à Segunda Guerra. Mas falar do pão é antes
de mais nada falar dos cereais -sobretudo do trigo-, de seu cultivo e das tecnologias envolvidas. Embora o livro
apresente uma ampla série de informações, é um trabalho datado: basta lembrar que ignora toda a importante historiografia francesa do século 20 ou que insiste recorrentemente na idéia da Idade
Média como um período de total estagnação ou que considera os indígenas em
geral como incapazes de desenvolver
"valores espirituais".
O livro foi publicado em 1944 e revisto
nos anos 50, mas é obra de um publicista
formado no período anterior à Primeira
Guerra. Isso explica a modalidade da
narrativa histórica de Jacob, presa aos
eventos e ao peculiar e pitoresco, em detrimento de uma compreensão mais
acurada do movimento histórico. O livro
foi concebido como obra de divulgação
para o grande público e optou por alinhavar uma série de histórias, sem preocupação maior em articulá-las em uma
narrativa mais estruturada e estruturante. As partes iniciais, sobre o pão na Pré-História, na Antigüidade e na Idade Média são mais interessantes, porque não
sucumbem à praga que permeia as partes subseqüentes (o pão na América "primitiva", no século 19 e nos nossos dias):
um direcionamento interessado e apologético aos EUA, revelando que se trata de
um livro escrito para o público norte-americano, no qual o autor demonstra
sua gratidão pela terra que o recebeu.
Pois Jacob foi um judeu alemão que escapou dos campos de extermínio no último minuto, imediatamente antes da
"Solução Final", e que encontrou acolhida nos EUA. Daí a apologia dos personagens, das máquinas, da missão e da grandeza norte-americanas, que irrita este
leitor. Mas, ao final, as últimas três páginas do longo livro são indispensáveis,
um pungente relato e peroração contra a
barbárie. Elas valem o livro.
Leopoldo Waizbort é professor de sociologia na
USP e autor de "As Aventuras de Georg Simmel"
(editora 34).
Comida - Uma História
364 págs., R$ 52,90
de Felipe Fernández-Armesto. Trad. Vera Joscelyn. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2585-2000).
Seis Mil Anos de Pão
590 págs., R$ 68,00
de Heinrich Eduard Jacob. Trad. José M. Justo. Ed.
Nova Alexandria (r. Dionísio da Costa, 141, CEP
04117-110, SP, tel. 0/xx/11/5571-5637).
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