São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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OBRAS ABERTAS


O curador da principal mostra do planeta, que começa sábado em Kassel, na Alemanha, fala da nova geração, critica a "marca" Guggenheim e diz que a arte é política


Jehovanira Chrysóstomo de Sousa
especial para a Folha

A Documenta de Kassel, na Alemanha, a maior exposição internacional de arte contemporânea, será inaugurada oficialmente no dia 8 de junho com o mais ousado e extensivo projeto de sua história. A Documenta 11, que irá até 15/9, é concebida como "uma produção de idéias" pelo curador nigeriano Okwui Enwezor, 39. É maior em conteúdo, espaço e tempo que as anteriores. É baseada em cinco "plataformas" realizadas a partir de março de 2001 em cinco continentes (1). O projeto toma forma concreta como resultado de um processo de pesquisa sobre as diferentes formas de intervenção e de produção da arte contemporânea.
Todas as formas de mídia estarão representadas na mostra, que inclui obras inovadoras de 116 artistas de todas as gerações, desde Louise Bourgeois, 91, a novos grupos de vanguarda surgidos na virada do século. Entre os convidados de cerca de 49 países estão o brasileiro Cildo Meireles, convidado pela segunda vez (já participou da Documenta 9), e Artur Barrio, artista nascido em Portugal que vive no Rio de Janeiro. Em entrevista exclusiva à Folha, Enwezor explica a Documenta 11.
Nascido na Nigéria, o atual curador vive desde os 19 anos nos EUA, onde estudou literatura e ciência política. É autor de diversas publicações sobre arte africana contemporânea e fundador e editor da revista "NKA -Journal of Contemporary African Art", de Nova York. Escreve regularmente para várias revistas internacionais de arte e trabalha na área de curadoria há muitos anos. Foi curador da 2ª Bienal de Johannesburgo (África do Sul), em 1997. Desde 1998 trabalha como curador da Documenta 11.

O que o sr. pretendeu e o que conseguiu deslocando a Documenta de Kassel para outros lugares com a realização das denominadas "plataformas"?
Por meio desses "locais discursivos", a Documenta 11 estendeu seu espaço a um público maior. As cinco plataformas constituem os espaços intelectuais da mostra e abrangem o questionamento e o debate de temas de importância global, que se refletem em outros contextos, para culminar finalmente com a exposição em Kassel.
Essas plataformas não possibilitaram apenas uma produção de conhecimentos mas também tornaram transparente o interesse intelectual e de pesquisa da Documenta.
As críticas feitas ao projeto ao longo de sua realização influenciaram de alguma forma a sua concepção original?
Muitas idéias surgidas nas plataformas tiveram naturalmente influência na produção da Documenta. Mas foi mais um processo de desenvolvimento, não de alteração da sua concepção. Num processo assim, trata-se mais de perceber as críticas que vão surgindo no debate da cultura. Sempre ocorrem críticas construtivas e negativas. Mas estas frequentemente vêm de pessoas mal informadas, não merecem resposta. As críticas discutidas nos debates foram sempre acolhidas e desenvolvidas.
Desde o início de sua curadoria houve acontecimentos que mudaram a ordem mundial, sobretudo o atentado ocorrido em Nova York em 11 de setembro de 2001. De que maneira isso se reflete na Documenta 11?
A idéia da Documenta 11 está ligada ao que está acontecendo no mundo. Para mim, não foi o 11 de setembro que desencadeou uma mudança na ordem mundial. Antes dessa data o mundo já vinha sofrendo uma radicalização. Nesse sentido, a data nada mudou na concepção da Documenta. Nos debates confirmou-se que, quando há uma dominância da cultura ocidental, a questão não é o que se passa na cultura, na arte, mas quais são as formas autônomas de produção de arte; como são desenvolvidas as estruturas de poder numa rede política; e quais são as tendências da arte e o seu papel nessas estruturas.
O sr. vem, por formação, da área de política e literatura. No seu trabalho de curador isso é uma vantagem?
Não acho propriamente uma vantagem. Mas também não acho que somente historiadores da arte possam ser curadores. A meu ver, para lidar com arte é preciso aplicar conhecimentos de muitas áreas, interdisciplinares. Quem traz outra formação pode contribuir com uma outra visão. Nesse trabalho é muito importante a cooperação com instituições e a troca interdisciplinar de conhecimentos.
O sr. escolheu sobretudo pontos políticos como tema das "plataformas". A exposição será igualmente política?
A ligação dos temas das plataformas é mais histórica que política. O objetivo foi captar a consciência histórica do mundo de hoje. Compreender e analisar, nas localidades dos debates, o que nelas subsiste como vestígios ou restos do pós-colonialismo, do imperialismo, da dominância ocidental, do eurocentrismo... Naturalmente há uma relação entre os debates e os trabalhos feitos para a Documenta 11. Mas não de uma forma ilustrativa. A arte é em si política.
Sua antecessora, Catherine David, introduziu pela primeira vez uma programação paralela de debates, da qual o sr. participou como conferencista. Sua concepção da Documenta 11 tem relação com essa experiência?
A afinidade com a Documenta 10, de Catherine David, é mais intelectual. Acho como ela que uma exposição como a Documenta deve ser mais do que uma exposição de peças. Não apenas a visualização do emocional, do fenomenológico. A arte contemporânea tem muito a ver com os diferentes desenvolvimentos econômico e institucional dos países. E a exposição deve abranger também essa realidade e torná-la compreensível ao público.
Em suas críticas ao eurocentrismo, o sr. se referiu à expansão dos museus Guggenheim como uma espécie de cadeia multinacional, em prejuízo da produção local de arte. No Brasil, vem sendo esperada com entusiasmo a construção de um Guggenheim no Rio de Janeiro. O sr. acha isso problemático?
Não sou contra museus Guggenheim. Minha crítica é que hoje em dia nenhum museu, como nenhuma instituição cultural, está isenta de ser questionada. Hoje toda instituição cultural, como toda grande firma, tem que estar aberta a reformas, aberta às necessidades da comunidade a que servem. E muitos museus têm uma visão bem estreita das suas atividades e de seu papel na sociedade. Fecham suas estruturas e excluem grupos sociais de seu acesso, exercendo dessa forma uma discriminação.
A idéia de expansão do modelo Guggenheim de museu se baseia na crença de que se pode expandir a sua idéia de arte no mundo como uma "marca". Note-se que nos últimos 30 anos o mercado de arte continua o mesmo: Nova York, Londres, Paris, Milão. Mas o número de localidades de produção aumentou... É preciso criar espaço para a arte de dimensões social e política.
O público de arte deve ser um público emancipado, capaz de crítica. Por isso é muito importante que se questione de que maneira uma instituição cultural, um museu, deve lidar com a comunidade a que serve. Somente a representação arquitetônica numa cidade certamente não adiantará muito à comunidade. Mas o contexto local no qual irá inserir-se.
Na Documenta passada participaram diversos artistas brasileiros e, nesta, apenas um. A atual produção de arte no Brasil não é mais tão interessante para a Documenta?
Não sou especialista em arte brasileira, mas é evidente que já há muito tempo têm partido do Brasil tendências artísticas importantes. Para um curador, não se trata de criar uma abstração de um país, selecionando uma quantidade satisfatória de artistas. Conta a qualidade dos trabalhos. E nisso ele tem de desenvolver praticamente uma relação individual com cada artista, tentar criar espaço nas cenas locais para aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de apresentar seus trabalhos numa exposição como a Documenta. Do Brasil vêm Cildo Meireles e Artur Barrio.
O que o sr. acha da Bienal de São Paulo?
Infelizmente não vi a Bienal deste ano, mas vi a anterior. Achei extraordinário o trabalho de Paulo Herkenhoff, uma produção incrível. A abordagem de temas que aproximam as diferenças culturais na sociedade, como o movimento antropofágico em São Paulo, é exemplar. A Bienal de São Paulo é uma das mais antigas do mundo e, nesse contexto, sem dúvida é um espaço muito importante.
Quais são as tendências atuais da arte contemporânea? Que país está despontando nesse sentido?
Existem várias tendências, em contraste com as décadas de 60 e 70, quando a arte se concentrou numa linguagem. Na década de 80 houve o surgimento de grupos na cena de certos países, quando então as emoções foram tratadas coletivamente. Hoje as pretensões são mais interdisciplinares. Em primeiro plano está a comunidade em que se vive. A pesquisa de temas é que vai desencadear os trabalhos.
Sob esse aspecto, não há um único país dominante, mas grupos que se empenham em alguns países. Como por exemplo, no Senegal e Kinshasa, na África, onde as instituições são ainda fracas; na Argentina, onde os efeitos da globalização assumem a forma de uma extrema ameaça... Nesses países há grupos que tentam trabalhar de forma reflexiva a produção de arte e os conhecimentos sobre ela como uma reação à situação vigente.
Cada membro do seu time de co-curadores vem de um país diferente. Qual foi o critério de sua escolha?
São profissionais que trabalham na área internacional em diferentes setores da produção científica. Para mim foi importante trabalhar com profissionais que possuem um amplo horizonte intelectual, mas se permitem se questionar ao longo de um projeto tão longo como a Documenta e trazer uma outra visão ao trabalho de curadoria.
Na Documenta prevalece algum gênero artístico específico?
Não há nenhum gênero predominante na exposição. É claro que a pintura não tem mais a mesma posição de anos atrás. Há muita escultura, muita fotografia e menos vídeos e filmes.
Específico nesta Documenta é que pela primeira vez a maioria das obras da exposição foi produzida especialmente para a Documenta (cerca de 90 trabalhos de um total de 116 artistas convidados). Inclusive um livro sobre as novas idéias de urbanismo na América Latina, que está sendo produzido na Colômbia.


Nota 1. Plataforma 1: "Democracy Unrealized", Viena, Áustria (15/3 a 20/ 4/ 2001); plataforma 2: "Experiment with Truth - Transitional Justice and the Processes of Truth and Reconciliation" (Nova Déli, Índia, 7-21/5/2001); plataforma 3: "Creolité and Creolization" (Santa Lucia, EUA, 11-16/1/2002); plataforma 4: "Under Siege -Four African Cities: Freetown, Johannesburg, Kinshasa, Lagos" (Lagos, 15-20/3/ 2002).

Jehovanira Chrysóstomo de Sousa é jornalista.


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