São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002 |
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+ livros "Genealogias da Amizade" analisa as origens do conceito e como ele foi sendo incorporado ao espaço privado a partir do século 19 Entre quatro paredes
Oswaldo Giacoia Júnior
Na mesma provocação em que
procurou traçar as regras para
a condução do parque humano, Peter Sloterdijk afirmou
que, se a filosofia conserva intacta, há
2.500 anos, sua força de atração, ela deve
isso à sua capacidade de fazer amigos pela mediação do texto escrito. Por isso, para Sloterdijk, a história da filosofia ocidental -em especial a cultura humanista que nela se insere- é em grande parte
o resultado de um diálogo epistolar entre
amigos desconhecidos, que se sucedem
na cadeia das gerações.
Se, em Aristóteles, os laços de amizade retornam ao domínio do corpo e das relações políticas entre os amigos, desfaz-se completamente, por outro lado, o vínculo entre "Eros" e "philia", ainda subsistente em Platão, do mesmo modo como o código das relações entre amigos passa a ser confiscado pelo léxico do parentesco familiar, especialmente no registro da fraternidade e da filiação. Na sequência, Francisco Ortega mostra claramente a persistência da influência de Aristóteles no mundo greco-romano, demonstrando como, em Cícero e na tradição da "amiticia" romana que a ele se segue, se mantém a noção aristotélica da verdadeira amizade, baseada em relações eletivas, livres e recíprocas entre cidadãos virtuosos, com um forte componente político no plano da projeção social pela via das relações de amizade, com vista ao desempenho de funções investidas de poder político. Já no mundo cristão, conserva-se também uma forte influência da concepção aristotélica de amizade, porém traduzida no vocabulário ascético das regras e códigos monásticos. Se é verdade que fica restabelecida aqui a antiga ligação platônica entre amor e amizade, isso se faz com sacrifício do caráter pessoal e eletivo da relação entre amigos concretos. O amor presente em tais relações não apenas é descarnado e ascético mas completamente transfigurado em sua natureza: o verdadeiro amor não é mais "Eros", porém consiste em "caritas" e "agape", ou seja, na união fraterna e universal que faz comungar, num mesmo espírito, a totalidade do gênero humano. De novo, o registro familiar das relações de filiação e de fraternidade se infiltra na percepção e dicção social da amizade. Com o Renascimento e a passagem para a modernidade, assistimos, segundo Ortega, a uma reativação do papel político da amizade, vivida e teorizada enquanto figura legítima da sociabilidade, tanto sob a forma das relações que se desenvolviam no ambiente das cortes do Antigo Regime -ainda que, nesse domínio, o vocabulário do amor cortês também ditasse as regras para a amizade- quanto daquelas que, nas repúblicas, se ofereciam como ligação entre cidadãos virtuosos. Entretanto, já por volta do final do século 18 -e, de modo progressivamente acentuado e irreversível, a partir do século 19-, se verifica no Ocidente um movimento de privatização da amizade, desinvestindo-a, de maneira integral, de seu caráter político e de sua inscrição no âmbito público. Ao longo desse processo, a amizade é absorvida no continente privativíssimo das relações familiares e conjugais. Nesse processo, o enquadramento psiquiátrico e psicológico da homossexualidade no âmbito da patologia e das formas de perversão sexual -assim como a extrema valorização das relações heterossexuais monogâmicas, como estas se configuram no casal vitoriano- instituem a família como o modelo normativo de socialização regular e produtiva. E, com isso, todas as formas alternativas de relações amorosas perdem importância política e passam a se integrar no que Foucault chamou de "dispositivo normatizador da sexualidade". "Genealogias da Amizade" tem pleno êxito em mostrar como o processo de despolitização e esterilização do espaço público determina a dinâmica da moderna vida social, com uma crescente valorização da vida familiar e uma familiarização progressiva do conjunto da vida privada. Para o autor, nos tempos sombrios em que vivemos, "talvez seja o momento de apostar em outras formas de sociabilidade, tal como a amizade, que, não substituindo a família, possam coexistir com ela e fornecer um apoio material, emocional e cognitivo que permita uma superação solidária dos riscos". (pág. 161). Se o domínio próprio da amizade radica no espaço aberto entre os indivíduos que compartilham a cena pública e se enfrentam na arena livre do debate político responsável, então o moderno culto narcisista da intimidade -aquilo que Ortega chama de espaço privado de condomínios fechados e de cultura de shopping centers- seria, de fato, um obstáculo considerável a uma estilística da amizade e, com isso, a um experimento social e cultural que pudesse se apresentar como plausível alternativa de solidariedade política numa era de indigência e banalização da vida. Oswaldo Giacoia Júnior é professor livre-docente de filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, autor de "Nietzsche" (Publifolha) e "Labirintos da Alma" (Ed. da Unicamp). Genealogias da Amizade 173 págs., R$ 27,00 de Francisco Ortega. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, SP, tel. 0/xx/11/ 3068-9433). Texto Anterior: + política: Separados, mas iguais Próximo Texto: Lançamentos Índice |
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