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PÓS-MODERNISMO SUBVERTEU O SENTIDO DAS AÇÕES POLÍTICAS E COMBATEU A PARANÓIA
DA BUSCA IDEALISTA DA IDENTIDADE
A REVOLUÇÃO SILENCIOSA
por Teixeira Coelho
Nada mais indicativo da força de um estilo de
pensamento do que a insistência de seus opositores em declará-lo outra vez morto.
O pretexto para a nova condenação à morte
do pós-modernismo é a invasão do Iraque e o combate
ao terrorismo planetário, supostos sinais da persistência das "grandes narrativas" e, portanto, do fracasso de
uma das teses do pós-modernismo, retirando-lhe a razão de ser.
Mas não há nesses fatos nenhum traço de uma "grande narrativa" como a do cristianismo ou a do messianismo modernista totalitário da sociedade política (Estado + partido político) que implantaria a utopia controlada e a paz universal do reino dos homens. A "narrativa do Iraque", que é mais a do grupo de Bush que a
do capitalismo como um todo, não funciona nem para
os americanos, quanto mais para a Europa e o resto do
mundo. Levantar esse argumento é má-fé, essa sim tão
grande quanto a que "justificou" a invasão do Iraque.
O pós-modernismo -polifacetado demais para falar
dele em bloco, mas, enfim...- está mais vivo do que
nunca porque assim o exigiram e exigem aquilo contra
o que se insurgiu, como (mas não só) o capitalismo (pelo menos parte dele, a selvagem) e o marxismo, pelo
menos parte dele, o "marxismo de neandertal", como a
ele se refere com frequência o no entanto anti-pós-modernista Terry Eagleton. Para este, aliás, o oposto do
pós-modernismo não é o modernismo nem um igualmente vago iluminismo, mas o socialismo, numa tentativa de identificar o pós-modernismo com o inimigo do
socialismo, segundo ele, o capitalismo, em truque ralo
que impressiona apenas os ingênuos.
Quão vivo estão o pós-modernismo e suas reservas
heurísticas é algo que se vê nas questões e modos de encará-las por ele trazidos à cena e que já demonstraram
seu valor. Uma, a noção de que os "centros" são vários,
e não um só, tanto os centros de poder a combater como os do contrapoder. O poder não está num único
ponto, num único "lá", num único "eles", assim como a
força de resistência ao poder não se encontra num único agente (um partido, uma classe social), não havendo
portanto um modo único de combatê-lo: a luta se dá em
várias instâncias e vários tempos.
A entrada em cena do corpo e da sexualidade foi outro
movimento com o qual o pós-modernismo resgatou
duas dimensões sufocadas pelas "grandes narrativas"
do cristianismo e da "luta revolucionária". Que o corpo
e a sexualidade possam vir a ser novos fetiches não lhes
diminui a relevância ou os recondena ao ostracismo.
Ingenuidade supor que se possa montar a equação
"correta" desses e outros temas em tão pouco tempo. O
enfrentamento de certos problemas (ou todos) tanto
coloca novas questões quanto elimina as anteriores, e o
pós-modernismo não tem a pretensão de deter as respostas definitivas, ao contrário de seus soberbos e impositivos oponentes.
Outro mérito do pós-modernismo: deixar evidente
que o dinamismo da sociedade no rumo da vida melhor
não é exclusividade (pelo contrário!) da sociedade política, como tardiamente descobre, em suas próprias palavras, Fernando Gabeira, ele que já havia rachado um
pilar do modernismo, o da "luta revolucionária", ao
aparecer de tanga numa praia carioca-num ato que
revelou tanto seu corpo como a força de um gesto do
corpo ( Vinicius de Moraes: "Hás de fazer do corpo uma
morada..."). O pós-modernismo não convocou a sociedade civil para as ruas, é fato: ele não se arroga esse poder insolente (ele desconfia do poder, algo intolerável
para o modernismo, que disso vive), mas com ela emergiu para a primeira cena, e essa é a ação política que seus
oponentes dizem que ele não tem porque continuam a
pensar dentro dos marcos do século 19, para os quais a
sociedade política deveria ser a única a dar as cartas, como na sucessão de horrores totalitários de todos os matizes nesses cem passados anos.
Decisiva também é a contribuição do pós-modernismo para o tema da identidade, combatendo a paranóia
da busca idealista da identidade nas famosas "raízes" ao
sugerir que a identidade é um conjunto vazio passível
de ser preenchido de variadíssimas formas, na esfera da
sociedade e do indivíduo. Edward Said, insuspeito
quanto a isso, não mede as palavras: "Uma das coisas,
não diria mais repelente, porém antagonística, é a identidade, a noção de identidade única... me interessa é a
identidade múltipla... a idéia de que as pessoas devam
interessar-se por si mesmas e suas raízes me parece vastamente tediosa e sem propósito...".
O pós-modernismo ainda não triunfou de todo nesse
ponto. Prova-o a tentativa de fazer outra vez da identidade dura vinculada às "raízes" uma âncora das ações
culturais do novo governo instalado no Brasil em 2003.
A diferença com outros momentos históricos é que
agora existe uma experiência histórica de quatro décadas com a "não-auto-identidade", com a real diversidade, que talvez torne mais difícil a rearmação daquela paranóia ("talvez" porque nenhum avanço, aqui, é necessariamente definitivo).
Outro caldo que o pós-modernismo ajudou a formar
é o da subversão contemporânea (feita da afirmação do
direito à preguiça, do movimento das zonas autônomas
temporárias e tantos outros), que se infiltra nos vários
fóruns sociais ao redor do planeta e que a ideologia do
velho modernismo estacionado no aparelhamento da
sociedade política tenta ocultar e manipular.
Ainda um ponto: ao contrário do modernismo, seja o
que isso for, o pós-modernismo (que não está tão preocupado com seu nome) não é exclusivista, não adota o
"ou isso ou aquilo". O que procura é a conversa inclusivista do "e isso e aquilo", incorporando o próprio modernismo naquilo em que ele é estimulante: exemplos, a
idéia de hierarquia de valores (o elitista drama de Shakespeare é melhor que a popularesca novela da Globo) e
a necessidade de relativizar o relativismo cultural (não
aceito a idéia de não poder me erguer contra o apedrejamento legal de uma mulher acusada de desvio sexual
em algum país da África apenas porque isso seria próprio de sua retrógrada cultura). O valor heurístico central do pós-modernismo é sua insistência na necessidade de pensar "sempre de outro modo", como sugeriu
Wittgenstein.
Esse é o ponto, já firmado agora que se tornou moeda
corrente (portanto invisível) tanta coisa para cujo afloramento o pós-modernismo contribuiu. Numa entrevista nos anos 70, perguntaram a [o pianista] Glenn
Gould por que seu repertório não era ainda mais contemporâneo, por que incluía tanta coisa do passado e
tanta coisa estranha do passado. Gould respondeu não
ver nenhum motivo para ser escravo do "Zeitgeist" [espírito do tempo], embora sabendo que, se não se colocasse numa perspectiva contemporânea, não teria muito como contribuir para a cena de seu tempo, motivo
pelo qual tocava isso "e" aquilo. O pós-modernismo
quer ser esse tipo de intérprete da música do mundo.
Vem sendo.
Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e professor titular da Escola de
Comunicação e Artes da USP. É autor de "Dicionário Crítico de Políticas Culturais" e "Niemeyer - Um Romance" (ed. Iluminuras).
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