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"A Viagem" traça um paralelo entre o surgimento
da psicanálise e a literatura fantástica do século 19
Exercícios de contar histórias
Giovanna Bartucci
especial para a Folha
Não há quem saia ileso da feitura
de um doutorado. Especialmente se o sujeito em causa é
psicanalista -habituados que
estamos a escutar nossos pacientes, e não
a escrever romances ou teses. Mais ainda
se o percurso em questão o leva da literatura fantástica à psicanálise e, de volta,
do enigma ao mistério.
De fato, em "A Viagem - da Literatura à
Psicanálise", livro de Noemi Moritz Kon
que era originalmente uma tese de doutorado, a hipótese da autora é a de que "o
surgimento e a função do pensamento
psicanalítico podem ser apreciados e
compreendidos também a partir das
transformações ocorridas no campo literário nas décadas do século 19".
Entretanto, se a autora nos permite, simultaneamente, acompanhá-la e desfrutar do processo que a levou a elaborar
um estudo por meio do qual buscou significar a relação entre o declínio da literatura fantástica e o surgimento da psicanálise, a originalidade de seu trabalho reside, e esse é o ponto, na forma que a autora permitiu que o resultado de sua pesquisa tomasse.
Os mistérios da alma
Dividido em
três partes, compõe a primeira parte do
livro a novela intitulada "A Viagem - de
Paris a Quillebeuf sur Seine", que descreve um percurso de trem de uma comitiva
composta por cinco médicos e um jornalista, Sigmund Freud entre eles, da capital francesa a uma pequena cidade na
Normandia, durante o ano de 1885.
Interessada em desvendar os mistérios
da alma humana, a comitiva tem como
objetivo a construção de uma nova teoria da alma. Ficção instrumental sintético-literária -uma montagem literária
feita a partir das obras de Guy de Maupassant, Edgar Allan Poe, Robert Louis
Stevenson e Machado de Assis, somadas
à teoria psicanalítica e biografias de Sigmund Freud e, ainda, contempladas da
perspectiva arqueológica de Michel Foucault-, a novela é o percurso mesmo,
realizado por meio da narrativa de histórias de cunho fantástico relatadas pelos
viajantes, que nos leva da literatura fantástica à psicanálise.
Tão fundamentais à obra quanto a novela escrita pela autora, no entanto, são a
segunda e a terceira partes do livro, que
perfazem o caminho de volta, do enigma
ao mistério.
De fato, "Os Bastidores", segunda parte do livro, composta de quatro capítulos
propostos sob a forma teórica e analítica,
"Resenha das Fontes", "A Construção de
"A Viagem'", "De Parágrafo em Parágrafo", "Ainda uma Observação" e, incluo
aqui também, as "Notas" -ainda que,
por vezes, as elaborações contidas nas
mesmas possam se sobrepor às elaborações formuladas nas partes anteriores-,
permite que acompanhemos o cerzimento da novela pela autora, de parágrafo em parágrafo.
Enquanto "Os Bastidores" também traz a tese de
que "é possível compreender a criação do
pensamento freudiano e
do novo homem por ele
concebido também por
meio de suas ressonâncias
e confluências com a literatura fantástica", "O Milagre, o Mistério e o Enigma", terceira parte do livro, é, de fato, o caminho
de volta, do enigma ao
mistério.
E, talvez nesse sentido,
apontar a originalidade
da forma seja pouco.
Aqueles que conhecem a
obra anterior da autora,
"Freud e Seu Duplo - Reflexões sobre Psicanálise e
Arte" (Edusp/Fapesp),
poderão constatar, com
prazer, o salto dado por
Kon nesse novo trabalho.
Se, em seu primeiro livro,
Kon pensa o artista como
o duplo amado (e temido)
do psicanalista, "A Viagem" é o exercício mesmo
dessa proposta.
E, com efeito, a possibilidade de acompanharmos a escolha dos escritores e autores com os quais a autora trabalha é somada à explicitação da sua maneira de
compreender o fazer psicanalítico, descrito por ela como "um fazer do mistério,
e não do enigma"; da perspectiva da autora, "o processo de composição desse
estudo espelhou uma prática da psicanálise". "Procurei criar uma história atualizando e dando corpo a um virtual possível; ficcionalizei a busca de uma origem
mítica do pensamento psicanalítico", diz
a autora.
Se "criar histórias é próprio do ofício
do escritor", para Kon "é também o próprio trabalho do psicanalista", e é nesse
sentido que a autora, de fato, dá um salto
e "faz arte".
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Giovanna Bartucci é psicanalista e ensaísta,
membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É organizadora da coleção
"Psicanálise e Estéticas de Subjetivação" (Imago).
A Viagem
424 págs., R$ 43
de Noemi Moritz Kon. Companhia das Letras (r.
Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500).
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