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O sertão em forma de hipertexto
"Grandesertão.br", de Willi Bolle, defende que o romance
de Guimarães Rosa esconde uma história criptografada do Brasil
Wander Melo Miranda
especial para a Folha
Na entrevista que concedeu a
Günter Lorenz em janeiro de
1965, Guimarães Rosa assinalou
que a crítica literária deve ser
"um diálogo entre o intérprete e o autor,
uma conversa entre iguais que apenas se
servem de meios diferentes".
Além de intermediário entre a obra e o
leitor, o crítico se veria investido da função
de complementar o texto ao acrescentar a
ele sentidos imprevistos, agindo como o
navegante que "sobe a bordo da nave como timoneiro", em busca de novas descobertas. O bom escritor e o bom crítico são
descobridores que "procuram mundos
desconhecidos".
É essa a primeira impressão que se tem
-e aos poucos se confirma- com a leitura de "Grandesertão.br - O Romance de
Formação do Brasil", de Willi Bolle. A surpresa do título, que destaca a abordagem
literária da nacionalidade e da nação por
meio de seus desdobramentos futuros, revela de chofre o que o leitor terá pela frente. Revela também, no decorrer da análise,
sua filiação à linha sociológica dos trabalhos pioneiros sobre "Grande Sertão - Veredas", realizados por Antonio Candido e
Walnice Nogueira Galvão, embora a estenda às conquistas recentes da tecnologia
da informação, sem fazer desse procedimento uma salada teórica indigesta.
A hipótese principal é a de que "Grande
Sertão - Veredas" é um romance de formação ("Bildungsroman") que se dá a ler
como história criptografada do Brasil. Para tanto, a narrativa reescreve, na perspectiva do "esquecimento ativo", "Os Sertões", de Euclides da Cunha, bem como
dialoga e polemiza com ensaios sobre a
formação nacional, de autoria de Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio
Prado Jr., Celso Furtado, Antonio Candido, Raymundo Faoro e Darcy Ribeiro.
Como "livro-síntese dos retratos do Brasil", ele cria um hipertexto que configura
uma "narração-em-forma-de-rede", metáfora espacial de valor geográfico, empírico e alegórico que expressa um pensamento labiríntico cuja forma literária é o
sertão. A analogia com o cérebro humano
-sua concepção como "metáfora da
aprendizagem"- permite à experiência
narrativa localizar o "sertão dentro da
gente". O trânsito entre o interno e o externo, facilitado pela acuidade metodológica
de Willi Bolle, acentua o significante heterogêneo do sertão, considerado como "antipaisagem", "arquipaisagem da civilização" ou, em última instância, "país arcaico, no limiar entre a mitologia e a história".
Jagunço desconstruído
Diferentemente das leituras anteriores, a jagunçagem aí se inscreve não como tema a ser
analisado, mas como discurso pertencente
ao "genus indiciale", ao discurso diante do
tribunal, cujo exemplo mais flagrante é o
julgamento de Zé Bebelo e, em certo sentido, o relato rememorativo e confessional
de Riobaldo. Daí a originalidade do "enfoque da relação entre o discurso da jagunçagem como instituição e o discurso mediador do narrador rosiano".
A escolha de um "jagunço letrado" como
narrador é, como insiste Willi Bolle, um
achado. Em virtude de sua natureza, aproximações e distanciamentos relativos ao
que é narrado são possíveis: o discurso da
jagunçagem é desconstruído por uma visão "de dentro" e uma perspectiva "de fora".
É a "instância metanarrativa", constituída pela auto-reflexão do narrador e pela
montagem de "cenas contrastivas" realizada pelo autor, que permite a instituição da
jagunçagem funcionar como alegoria do
"sistema político como um todo".
Essas questões confluem para o pacto,
que condensa todos os acontecimentos do
romance. A forma como é dada centralidade ao episódio é mais um dos momentos fortes da leitura de Willi Bolle, que o interpreta como "uma alegoria da institucionalização da Lei, expressa pelo primeiro
pacto ou contrato social, firmado na história primeva da humanidade".
Apesar de ser discutível a universalidade
que o analista empresta ao pacto, em razão
da ambigüidade que sua realização localizada encerra -houve ou não houve o pacto? O diabo existe ou não existe?-, ele não
deixa de ser também a "alegoria de um falso contrato social".
Alegoria do Brasil
Nesse sentido,
Guimarães Rosa "desmonta o discurso
utópico iluminista, para revelar lucifericamente a ordem político-social vigente". O
pacto, então, passa a ser visto como alegoria do nascimento do Brasil, encarnado em
Riobaldo, que passa a experimentar uma
nova identidade. Mais uma vez, dentro e
fora se conjugam sob o signo de uma ficção
de fundação "literal". Se o pacto é o elemento "centralizador" do relato, qual o lugar que nele Diadorim ocupa?
Se ela é analisada como "figura constelacional", "como forma de organizar os elementos do discurso", em que medida o trabalho de luto que sua perda acarreta e desencadeia a narração enquanto "história
do sofrimento" se articula com o pacto e
com tudo que ele significa? A opção interpretativa de Wille Bolle pela figura de Diadorim como "paixão estética", embora
bem construída, deixa a questão ainda em
suspenso. Ao contrário de ser a figura que
organiza o relato, Diadorim nele introduz a
questão do "gênero" ("gender") a partir da
margem que, na sua ambivalência, reforça
a bifurcação incessante dos caminhos e impede a integridade -narrativa, nacional-
de um sistema significante.
Diadorim permanece à deriva, indecidível na sua condição marginal que ilumina o
mundo público da ação pelo recalque dos
afetos privados, no fio da navalha entre a
soberania do desejo individual e a vontade
de uma vida comum, de viver em comum.
Nega-se, mesmo à sua revelia, à representação, interrompendo o fluxo do significado
e de uma possível verdade narrativa, disseminando projeções de alteridade demoníacas porque intraduzíveis na proliferação
significante do que é e não é.
Talvez o maior elogio que se possa fazer a
"Grandesertão.br" -o livro mais instigante surgido nos últimos anos sobre a obra de
Rosa- seja o fato de ele oferecer uma base
sólida para lançar o enigma rosiano para
um mais-além que abre novas possibilidades de leitura no presente e novos caminhos para futuras gerações de leitores.
Wander Melo Miranda é professor de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de "Graciliano Ramos" (Publifolha), entre outros.
Grandesertão.br
480 págs., R$ 44,00
de Willi Bolle. Ed. Duas Cidades/ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, São Paulo, SP, tel. 0/
xx/11/ 3816-6777).
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