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Ponto de Fuga
Quem desiste?
por Jorge Coli
No Brasil, desde o século 19, a cultura pautou-se muito
pela perspectiva nacionalista ao construir, de modo fictício, uma identidade. Como a inércia dos hábitos mentais é
forte e como as idéias simples seduzem, essa mítica brasileira é dura de queda.
O universo dos imigrantes no Brasil foi, por longo tempo, tratado como questão secundária. Eles eram o outro,
recebiam a marca do diverso, perturbavam culturalmente
e deviam ser negados pela ocultação. Não pertenciam a
nenhuma das três raças tristes. Não faziam parte da história. Uma dissertação de mestrado aguarda, de modo inexplicável, há 20 anos, que algum editor se interesse por ela:
"Desejado e Temido", estudo feito por Therezinha Ribeiro, na USP, sobre os discursos e debates parlamentares na
Primeira República, voltados para a imigração.
Os braços necessários ao país, em substituição aos escravos, traziam problemas de escolha. Quais os povos, quais
as raças a serem aceitos? As discussões se sucediam, e a autoridade de seu caráter oficial era reforçada por um pressuposto rigor científico. Debatiam-se atavismos raciais e
culturais, adequações maiores ou menores ao clima e ao
trabalho. Empregava-se o raciocínio analógico: falava-se,
por exemplo, de suecos e italianos da China.
Investia-se nas características biológicas e intelectuais,
nos traços climáticos e geográficos: "A raça amarela, consoante apreciação de cientistas, tem um temperamento
muito menos sujeito às intoxicações do impaludismo".
"Nós bem sabemos (as provas aí estão), que o europeu trabalha neste clima quatro ou cinco anos em serviço da terra
e ao cabo desse tempo está envelhecido, enfraquecido bastante, não é o mesmo homem."
Ectoplasma - "Nós bem sabemos", "sabe-se perfeitamente", "consoante apreciação dos cientistas", "as provas aí
estão": os parlamentares invocam evidências tácitas, cujo
indiscutível cunho de verdade universal é dado por uma
ciência moderna, que o político daqueles tempos, cientificista, positivista, racista, digeriu, assimilou e não põe em
dúvida. Pesam-se, medem-se todos os aspectos dessa humanidade estrangeira, da força à inteligência. Mesmo a
beleza de tal ou qual raça pode entrar, gravemente, no
cômputo, como fator ponderável: a eugenia desponta. Seguras e límpidas, as afirmações mergulham num abismo
de irracionalismos. Lugares-comuns são legitimados por
uma ciência desvairada, mitos se superpõem aos mitos.
Não estão em jogo interesses claros. É outra coisa, menos apreensível e ainda mais sórdida, que tomou as vestes
da razão e que dela escapou inteiramente. As representações mentais fictícias do outro, nutridas por fantasmas de
toda ordem, são julgadas e criticadas como se fossem dados de fato. O imigrante possível não é mais um ser: é um
imaginário que se metamorfoseia de discurso em discurso, sem perder sua irrealidade. É um tecido de preconceitos, é apenas preconceito.
Brasil brasileiro - Diante da sombra do outro, o medo faz
brotar a imagem de si mesmo. Fabrica-se então uma brasilidade fictícia, contraposta à invasão verdadeira e fantasiada dos imigrantes. Depois, os intelectuais modernos dariam a ela feições mais nítidas. O mito foi se impondo, indulgente consigo próprio, fazendo-se de homem cordial,
exaltando-se enquanto paraíso da fusão racial, do preconceito inexistente, de uma simpática antropofagia assimiladora e dionisíaca. Em verdade, não podendo evitar a presença do estrangeiro, ela tentou eliminá-lo da cultura.
Salve, salve - Penetrando nas espessuras desses debates;
descobrindo esse irracionalismo disfarçado de ciência, saber, bom senso; percebendo os interesses de classe acompanhados por desejos, paixões e preconceitos, fica mais fácil desmascarar, hoje, comportamentos mentais que imperavam no passado e recobrem o solo sobre o qual ainda
pisamos. Tudo isso ajuda a pôr em xeque palavras traiçoeiras que um certo sentimentalismo torpe exalta -pátria, nação, raça, bandeira...-, na verdade prenhes de
monstruosidades, como testemunhou tanto a história do
século 20.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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