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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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Em "Introdução às Grandes Teorias do Teatro", Jean-Jacques Roubine avalia as discussões sobre o fenômeno cênico, de Aristóteles aos autores atuais

A redescoberta do palco e da criação

Barbara Heliodora
especial para a Folha

Não é esta a primeira vez que a Jorge Zahar publica uma obra do notável estudioso do teatro Jean-Jacques Roubine, mas é possível que esta "Introdução às Grandes Teorias do Teatro" seja a mais significativa de todas elas. Morto em 1990, Roubine escreveu aqui, mais do que tudo, uma das mais claras e objetivas análises do peso das teorias estéticas sobre a dramaturgia francesa que se possa imaginar, principalmente porque nela a limpidez do pensamento é expressada em irretocáveis limpidez e precisão de linguagem: o conhecimento e o amor de Roubine pelo passado do teatro francês não lhe tiram nem a objetividade nem a exigência crítica, mas por certo tiram de seu texto a emotividade patriótica que macula tantos trabalhos. Roubine é tão exato quanto possam desejar os mais inflexíveis teóricos, mas o seu amor a um teatro vivo, que se comunique com o público, aquece e enriquece o que é dito.
A par da notável linguagem de Roubine é preciso ressaltar aqui o quanto o tradutor André Telles seguiu a proposta do autor, deixando o texto em português não só agradável e fluente, mas também um excelente veículo para a compreensão do pensamento apresentado.
Roubine divide sua obra em quatro blocos que refletem, com bastante precisão, etapas do desenrolar da dramaturgia: 1. "Aristóteles Revisitado", 2. "Da Tragédia ao Drama", 3. "O Princípio de Realidade", e 4. "As Seis Tentações do Teatro". Nas primeiras três etapas, Roubine examina quase exclusivamente o teatro francês, ressaltando com brilho o domínio dos teóricos, principalmente a soberana indiferença destes em relação ao fenômeno cênico, que explica a ausência de estudos da interpretação.
A obediência às regras, que na França era considerada um mérito em si, é examinada sob o ponto de vista do engano, da provocação do engano graças ao qual o dramaturgo sem talento era aplaudido simplesmente por escrever respeitando todas as regras, enquanto o gênio de outros era sacrificado e até mesmo destruído simplesmente por ousar desobedecê-las, sendo disso o mais famoso e clamoroso exemplo o de Corneille, com a condenação de "Le Cid".
No século 17, só Molière, por ser dotado de uma genialidade que encontrava sua melhor expressão na comédia, escapa um pouco dos grilhões criados pela Academia. Porém, já no século 18, Roubine destaca como um dos principais motivos da qualidade de Marivaux e Beaumarchais o encontro de linguagens muito individuais nos dois casos.
Roubine é particularmente penetrante em suas observações a respeito da importância das mudanças sociais e, consequentemente, da composição da platéia, com suas exigências específicas: o público que passou a frequentar o teatro depois da Revolução de 1789 era diferente daquele para o qual escreveu Racine: desapareceram as platéias que se deleitavam com referências à mitologia e aos heróis da antiguidade; e, no capítulo sobre a passagem da tragédia para o drama, é muito bem analisada e apresentada a função pedagógica de um teatro que, falando de épocas e acontecimentos mais próximos de quem os assistia, não escapa da perda da forma, pois, quando não se fala mais de reis, mas de contemporâneos, ou quase, sempre haverá na platéia a clássica reação antiarte que afirma -e com orgulho- saber que "ninguém fala em verso"... Mas Roubine vai mais longe, e seus parágrafos a respeito de "Uma Pedagogia da Virtude", "A Proximidade e o Afastamento", "Descoberta da Teatralidade" e "A Estética e a Moral" merecem leitura cuidadosa, pois boa parte da mais rotineira dramaturgia até o século 20 (e até mesmo entrando pelo 21) é herdeira direta de tudo o que aconteceu no século 18.
A descoberta do palco e o individualismo dos criadores mais recentes, que encontraram a liberdade para expressar seus gênios específicos em formas pessoalmente encontradas (o que, diz Roubine, implica, em última análise, o reconhecimento de uma realidade semelhante na impossibilidade de se imitar tanto Shakespeare quanto Brecht ou Beckett, pois suas formas nascem do que pensam e buscam pessoalmente no momento, não condicionados por qualquer estética pré-determinante. (É claro que qualquer desses gênios maiores pode inspirar novos autores, porém nunca ser imitado em sua forma).
Aos períodos mais recentes, Roubine dedica suas observações sobre as "tentações", que são os modismos que, um após o outro, procuram prender o teatro a certas missões com a predominância de um ou outro componente de sua forma total, em lugar do equilíbrio que os grandes gênios encontraram entre texto e espetáculo. A leitura de "Introdução às Grandes Teorias do Teatro" é preciosa tanto para quem quer aprender quanto para quem quer aprender ainda mais, pois faz pensar, a par de ser leitura das mais agradáveis.


Barbara Heliodora é crítica de teatro, tradutora e autora de "Falando de Shakespeare" (ed. Perspectiva), entre outros.


Introdução às Grandes Teorias do Teatro
608 págs., R$ 54,00 de Jean-Jacques Roubine. Trad. André Telles. Ed. Jorge Zahar (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2240-0226).



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