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Ponto de fuga
O pássaro da floresta
"Quando eu ouço Wagner, fico com vontade de invadir
a Polônia", disse Woody Allen. "Enquanto o capricho
de alguns homens fizer lealmente degolar milhares de
nossos irmãos, a parte do gênero humano consagrada
ao heroísmo será o que de mais horrendo existe na natureza humana", escreveu Voltaire. A ópera "Siegfried",
de Wagner, é a mais heróica, a mais positiva, a menos
angustiada de toda a "Tetralogia" concebida pelo compositor. O conjunto forma um mundo suicida que se
extinguirá, corroído por dentro, em "O Crepúsculo dos
Deuses". Mas "Siegfried" é o momento luminoso, e tremendo também, em que os valores instintivos da força,
do heroísmo e das armas, em que os poderes de uma raça superior, em pura comunhão com a natureza, ignoram o medo e matam quem merece ser morto.
Por sorte, "Siegfrid" é isso, mas não apenas. Sua complexidade de sentidos, seu cintilante tecido musical
abriram o Festival de Ópera do Amazonas. No ano passado, "A Valquíria" deixou uma sensação eufórica de
milagre: era possível montar Wagner em meio à floresta
equatorial, num teatro pequeno, com um elenco brasileiro predominante e grande qualidade artística. Graças
ao maestro Fernando Malheiro, atento como ninguém
às qualidades dos artistas locais, o milagre se repetiu. O
impacto de "A Valquíria" permanece inigualável; "Siegfried" demonstra que o projeto meio doido de levar
Wagner a Manaus se afirma e que é possível esperar
uma "Tetralogia" completa.
Letras - A professora ensinou: quem quisesse escrever
direito, que lesse os cronistas, Rubem Braga, por exemplo. A editora José Olympio lança a 19ª edição de "Elenco de Cronistas Modernos", uma antologia que demonstra a lição da professora. Todos os autores, ali,
nasceram faz tempo, alguns há mais de cem anos. Todos têm um jeito solto com as palavras, uma delicadeza
simples e cotidiana. Mesmo Clarice Lispector, às vezes
empregando por demais elipses que sublinham intenções profundas, atinge um estado de graça perfeito em
"Macacos", em que conta a morte de Lisette, saguizinha
(a crônica não diz se era sagui mesmo, mas devia ser)
suave e delicada, com expressões de gente.
Além dela, Drummond, Fernando Sabino, Paulo
Mendes Campos, Rachel de Queiroz, Rubem Braga,
nessa coletânea tão bem escolhida, evitam os modos
dramáticos ou sentimentais, qualquer eloquência, qualquer vulgaridade, qualquer jargão da moda, qualquer
palavra mais sonora ou esdrúxula. Eles possuem a elegância do natural, que é a mais difícil de todas, o sorriso
e a melancolia em medida discreta e mais verdadeira
que qualquer lágrima ou gargalhada.
Dona Gilda, a professora, tinha muita razão: esses
cronistas mostram o caminho invisível da boa escrita.
Não transmitem o talento, que isso é segredo deles, mas
oferecem, o que já é muito, o exemplo da modéstia, superior a qualquer grandeza.
Alien - Lawrence Kasdan, diretor de "O Turista Acidental", assina agora a adaptação para o cinema do mais recente livro de Stephen King, "O Apanhador de Sonhos".
É fácil dizer que o filme só vale por sua primeira parte.
Ela possui, de fato, a força dos sonhos. Mas contém
muito humor, em meio aos horrores das situações. Esse
humor persiste até o fim, inda mais forte nos momentos
em que o diretor parece não acreditar naquilo que está
fazendo. O final se afunila para uma piadinha infame,
ironia do cineasta em relação a sua obra.
Laços - O velho tema do triângulo amoroso foi reavivado pelo filme "Por um Sentido na Vida", de Miguel Arteta, estrelado por Jennifer Aniston. Num dia-a-dia sem
horizontes, a paixão, que deveria ser libertadora, provoca acontecimentos infames e sórdidos. Mais recente,
"Marie-Jo e Seus Dois Amores", de Robert Guédiguian,
se concentra também na impossibilidade de uma dupla
paixão. O cinema de Guédiguian brota da cidade de
Marselha, no mundo ensolarado do Mediterrâneo. O
tom é de franqueza luminosa. Evita ambiguidades para
melhor fazer surgir o mistério dos afetos.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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