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+ brasil 505 d.C.
Uma outra sociabilidade
José Arthur Giannotti
Costumo andar numa praça que,
por ser plana, convém a caminhadas de cardíacos. Noutro dia, perto
de uma prancha para exercícios
abdominais, testemunho de minha inapetência por movimentos violentos, uma jovem senhora perguntou-me se iria usar o
dito aparelho.
Depois de minha negativa, elegantemente se deita nela para ler seu livro. Não cabe
dizer que seu comportamento não seja social, que só levou em conta seus próprios
interesses, mas também seria inapropriado qualificá-lo de legítimo ou legal. Que tipo de sociabilidade representa?
Para ela, o outro lhe importa somente enquanto estiver no âmbito de sua ação direta, acessível a relações face a face. Não creio
que lhe passasse pela cabeça estar prejudicando alguém, aquela pessoa que desejasse
fazer ginástica e se visse impedida de usar
um aparelho público, já que não possuía a
devida a coragem de lhe pedir delicadamente que fosse ler em lugar mais adequado. Não abria mão, contudo, de decidir sobre a aplicação das regras de boa convivência. Ao passear pela praça, as aceitava tacitamente sem que, por isso, as seguisse como se desejasse a regra pela regra, instituída em nome da necessidade de preservar o
espaço público. Agiu tendo em vista o bem
das pessoas com as quais pudesse negociar
o sentido social de seu comportamento.
Válido para todos
Não há dúvida de
que, quando se segue uma norma social,
como nos lembra bem Aristóteles, algum
tipo de ser humano aparece no horizonte,
pois não se pode dizer que essa norma venha a ser boa ou má, a não ser estipulando
para quem ela vale. Mas a jovem senhora
reduziu esse universo àqueles com os quais
poderia negociar se era o caso ou não de
aplicar a regra.
Ora, quem freqüenta uma praça pública
não está pressupondo que as normas ali vigentes tenham validade apenas para aqueles com quem possa entrar em acordo. A
norma vem a ser social na medida em que
vale para todos os membros de uma comunidade, de sorte que sua legalidade depende também de um acordo prévio, relativo
ao próprio sentido do sistema normativo.
Se um banco está na praça é para que todos possam se sentar nele sem pedir permissão a nenhuma outra pessoa. E, se além
de sentar, me deito nele é porque, estando
a praça vazia, imagino não estar prejudicando a ninguém. Um banco numa praça
pública serve para as pessoas se sentarem
ou se deitarem, se isso não incomodar seres humanos em geral. Em resumo, na moralidade objetiva as pessoas querem a norma na qualidade de condição de suas existências sociais; se isso não retira delas o direito de avaliar a conveniência de tomar
certas liberdades -sentar-se ou deitar-se
no banco-, não é por isso que lhes é permitido a cada momento avaliar a legalidade, por conseguinte a aplicabilidade, de
uma norma pública. Por isso é que o Estado, sendo de Direito, decide em vez dela.
Aposto que, se perguntássemos à jovem
leitora se acreditava ser válido ler num aparelho público de ginástica, ela nos daria
resposta negativa. Mas não repõe e reafirma a universalidade da norma no plano do
próprio comportamento? Não opera como
se ela estivesse tão distante que precisava
formular seu sentido, passar de um nós
abstrato para um nós ao alcance da mão?
Noutras palavras, a norma pública continua mantendo sua validade, mas tão-só no
nível do discurso, sendo que na prática seu
sentido é reformulado de acordo com outras circunstâncias. Note-se que é precisamente essa reformulação que retira a aplicação da norma do espaço determinante
tradicional, onde ela é válida ou não válida
e nada mais. Desse ponto de vista, qualquer pessoa há de convir que, em praça pública, deitar-se num aparelho de ginástica
nem é legal nem legítimo. No entanto,
diante da pergunta a respeito de como seu
ato se determinaria diante dessa dualidade,
é quase certo que a moça responderia que
não agiu legalmente, mas em vista de uma
legitimidade que, invocada, não se apoiaria numa lei moral universal, mas numa
universalização e validação de uma situação particular. Note-se que não reivindicaria para si uma exceção, que vem a ser, nos
ensina Kant, fonte de imoralidade.
Suponhamos, apenas para fins de argumentação, que as normas sociais advenham de um contrato. Desse ponto de vista, ela não deve se deitar na prancha, mas
se sente legitimada a fazer o contrário porque reafirma o contrato no nível dos relacionamentos diretos. Se acreditasse que
seu ato fosse exceção, não precisaria negociar com seus vizinhos. Desse modo, aquele contrato mais universal, civil, responsável pela instalação de um poder jurídico,
em vez de simplesmente se arvorar em matriz normativa de qualquer sociabilidade,
depende agora daquele outro que a pessoa
tece no nível de sua própria sociabilidade.
Contrato civil e contrato social passam a se
determinar reciprocamente, um dependendo do outro para se efetivar.
Universal para um grupo
Esse comportamento de pastorear a aplicação da regra não seria mais freqüente do que aparece? Não é o que ocorre, "mutatis mutandis", no mercado informal de trabalho, no
exercício de uma liderança empresarial e
até mesmo na pirataria dos produtos culturais? Não domina instituições não-governamentais como o MST [Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] e o
Greenpeace? Tudo indica que essa forma
de agir escapa das oposições clássicas entre
o legal o ilegal, o público e o privado, introduzindo nessa bipolaridade clássica uma
multiplicidade possível de relacionamentos diretos. No fundo, aquilo que seria um
contrato originário se efetiva numa negociação particular posta para ser universal
para um determinado grupo de pessoas.
Quando o empregador e o empregado
realizam um contrato informal de trabalho, a despeito de reconhecerem as leis trabalhistas, simplesmente não se vêem como
exceção à regra, como se ela não devesse
lhes ser aplicada. É por uma necessidade
social que agem desse modo, pois, de outro, não poderiam sobreviver socialmente.
Por isso seu contrato informal deveria ter
validade universal para aqueles que se encontrassem na mesma situação. Estes não
se submeteriam à lei jurídica se não pudessem reformular sua universalidade abstrata na universalidade concreta de seu tecido
social. Quando firmam um contrato de
trabalho sem o amparo da lei trabalhista,
não a renegam, mas, igualmente, não retornam ao nível da insociabilidade completa, da luta de um contra todos ou ainda
do trabalho escravo.
Note-se que cada um não age como indivíduo qualquer disposto a alienar sua liberdade ou parte dela para continuar convivendo ou sobrevivendo talvez sem medo. Não se determina como ser racional escolhendo a forma de sociedade mais adequada para viver uns com os outros nas
circunstâncias mais diversas. Reconhece a
validade da norma moral e jurídica, mas a
aplica reformulada para que valha num
universo particularizado, no contexto de
pessoas sempre negociando entre si. Não
afirmaria, por exemplo, que a lei diz isso,
que lhe devo obediência, mas, como muitos fazem o contrário, não vejo porque não
posso fazer o mesmo. Move-se noutro plano afirmando que, se a lei disser isso, lhe
devo obediência, mas ela seria muito melhor e mais eficaz se meu modo de operar
fosse tomado como lei universal, sendo reformulada segundo as necessidades de
grupos particulares.
Zona de violência difusa
A sociedade não seria mais justa e livre se cada grupo pudesse negociar caso a caso a aplicabilidade das normas mais gerais? Já que a
universalidade abstrata não é possível, cada um trata de encontrar outra mais próxima da vida cotidiana.
Obviamente, esse tipo de raciocinar e de
agir aumenta a incerteza, faz com que o
medo e a violência espreitem nas zonas de
interferência de cada esfera particular. A
jovem leitora estava correndo o risco de se
ver confrontada ou mesmo insultada por
um cidadão mais corajoso e atrevido. Percebe-se que esse tipo de sociabilidade tende a ver a lei oriunda do contrato originário como necessidade vindo de fora, imposição, dever ser que não me diz imediatamente. Mas nessa contestação da validade
da lei estatal abstrata cria-se uma zona de
violência difusa, que não sabemos ainda
controlar. Não é por isso que toda essa rede tecida pela sociedade civil, se de um lado promete mais justiça, liberdade e eficácia no tratamento nos sistemas normativos, também é responsável pela interiorização da violência?
Nos últimos tempos essa oposição kantiana entre contrato civil e contrato social
vem perdendo progressivamente suas diferenças; de um lado, os ordenamentos jurídicos e suas aplicação se tornam mais
sensíveis às necessidades sociais, de outro,
os movimentos sociais se globalizam e encontram leis cada vez mais universais.
Até que ponto esse processo não abre espaço para o medo e para nova violência do
terror?
José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de "Certa Herança Marxista" (Cia. das Letras). Escreve na seção "Brasil 505 d.C.", do Mais!.
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