São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004 |
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Roteiro de Nelson
Entre o realismo e o naturalismo, o kitsch e a experimentação, filmes como "Boca de Ouro", de Nelson Pereira dos Santos, "Toda Nudez Será Castigada", de Arnaldo Jabor, ou "O Beijo no Asfalto", de Bruno Barreto, colocam em questão a transposição para as telas das peças do dramaturgo pernambucano, que é tema de mostra a partir desta semana no RJ
E valeu naquele momento a atuação, como produtor, roteirista e ator, de Jece Valadão, principal impulsionador da tradução do dramaturgo para o cinema. Outras adaptações da época ficaram marcadas por um naturalismo mais convencional, como o filme "Bonitinha, mas Ordinária" (J.P. de Carvalho, 1963) e, de J.B. Tanko, "Asfalto Selvagem" (1964) e "Engraçadinha depois dos Trinta" (1966). "O Beijo" (Flávio Tambellini, 1966) nos deu o exemplo raro de uma versão expressionista de Nelson Rodrigues. Em 1972, Arnaldo Jabor realizou "Toda Nudez Será Castigada", explorando os limites entre o kitsch e a experimentação estética, entre a tragédia moderna e o melodrama, fazendo avançar o debate sobre a representação da experiência brasileira e retomando questões postas pelo tropicalismo em 1967-8. O filme capturou uma atmosfera irônica de autodesqualificação do brasileiro (que repica na alegoria de "Tudo Bem", em 1978), cômica e exasperada, presente já em "Bonitinha, mas Ordinária", na figura de Fregolente, que interpreta o burguês cafona, administrador de orgias. Desdobramentos nos anos 1960-70 incluem a figura de J.B. da Silva, o político gângster de "O Bandido da Luz Vermelha" (Rogério Sganzerla, 1968), nítida derivação dos boçais rodriguianos cercados por uma locução radiofônica submetida à paródia. A tragicomédia se afirma, então, como uma nova forma de qualificar o drama social brasileiro, e Jabor a radicaliza em 1975, ao adaptar o romance "O Casamento", no mais arriscado mergulho do cinema na representação do teatro "desagradável". Há prolongamentos dessa opção na nova série de adaptações de Nelson Rodrigues deflagrada em 1978 pelo sucesso de "A Dama do Lotação", de Neville d'Almeida. É o apogeu do "filme brasileiro de mercado" (1978-83), da era Embrafilme. As sete adaptações desse período se localizaram entre a "cultura séria" e o mais direto apelo erótico, com resultado estético muito desigual. "A Dama do Lotação" (1978) e "Os Sete Gatinhos" (1980), de Neville d'Almeida; "O Beijo no Asfalto" (1980), de Bruno Barreto, "Engraçadinha" (1981), de Haroldo Marinho, e os filmes de Braz Chediak, "Bonitinha, mas Ordinária" (1980), "Álbum de Família" (1981) e "Perdoa-Me por Me Traíres" (1983) compõem o ciclo naturalista já marcado pela TV, porém sexualmente mais liberado. Vale, no entanto, destacar o exercício do estilo folhetim em Haroldo Marinho Barbosa e a polêmica proposta de Neville resumida na fórmula "chanchada com filosofia e insolência calculada". O espírito da tragicomédia produziu sua melhor crítica ao machismo da comédia erótica por meio de "Guerra Conjugal" (1974), de Joaquim Pedro de Andrade, adaptação de contos de Dalton Trevisan, outro escritor que satirizou a moral acanhada e o imaginário sexual da província, num universo afinado ao de Nelson. O filme de Joaquim Pedro mostra bem como o percurso das adaptações se inseriu num movimento maior do cinema brasileiro, que, a partir de 1969-70, saltou da tematização do mundo do trabalho e das questões sociais da vida pública para o "drama de família": conflitos de gerações marcam o filme "Copacabana Me Engana" (Antônio Carlos Fontoura, 1969); a agressão doméstica e o crime passional impulsionam os episódios de "Matou a Família e Foi ao Cinema" (Júlio Bressane, 1969); e a degeneração da casa-grande no estilo "Álbum de Família" ganha lugar, sinalizando crises e mudanças, em "A Casa Assassinada" (Saraceni, 70), "Os Monstros do Babaloo" (Elyseu Visconti, 1970), "A Culpa" (Domingos de Oliveira, 1971) e "Pecado Mortal" (Miguel Faria Júnior, 1970). No balanço entre Marx e Freud, prevaleceu o psicanalista: a abertura de "A Culpa" cita um trecho de "Totem e Tabu", que serve de referência não apenas ao filme de Domingos de Oliveira, centrado no incesto, mas também ao universo rodriguiano. Antes de adaptar a obra maior de Lúcio Cardoso, "Crônica da Casa Assassinada", Paulo César Saraceni já iniciara seu diálogo com esse escritor tão próximo de Nelson (não no tom nem na forma, mas nos motivos e valores), em 1962, com "Porto das Caixas", primeiro filme brasileiro moderno a focalizar a tragédia doméstica, a oposição mulher forte x marido medíocre e o ressentimento gerado por um ambiente provinciano. Saraceni retorna constantemente ao escritor mineiro, e sua reiteração dos motivos paralelos à obra de Nelson chegam a "O Viajante" (1999), um destaque dos anos 90. Tipos cafonas Há um modo de compor ambientes burgueses e "fazer significar" a cenografia ou o lado simbólico de uma fisionomia que permite destacar outro recorte de relações no cinema brasileiro. Há uma forma irônica de exibir tipos cafonas que ostentam uma relação desajeitada entre aparência viril e bigode, dado central no filme "Guerra Conjugal", de Joaquim Pedro (notadamente, em Nelsinho e Osíris), que nos lembra, pela inversão de sinal, figuras impositivas como a do jornalista Amado Ribeiro (atuação extraordinária de Daniel Filho), em "O Beijo no Asfalto". Cenografia e fisionomia sugerem relações de longo alcance e com mais conseqüências a explorar. Voltemos a "Ganga Bruta" (1933), de Humberto Mauro, à sequência do crime passional na casa do Rio de Janeiro. É notória a decoração da propriedade do "engenheiro", cheia de quadros e esculturas, pinturas acadêmicas de mulheres, algumas envolvidas em lençóis, num jogo de ocultação e sedução. Tal galeria projeta uma vontade de civilização, um elo com a "alta cultura" que traz os códigos do "fin de siècle", mas revela um gosto acanhado, antecipando a atmosfera do quarto, lugar do crime -o marido punindo a mulher infiel. A mulher lembra a composição dos quadros na parede, e o engenheiro traz o semblante e o bigode que sugerem a virilidade nos termos do melodrama. O engenheiro terá outros destinos: expiará a culpa em Minas, flertará com uma provinciana e casará pela segunda vez, num lance longe do final feliz. "Toda Nudez", de Jabor, começa com a entrada de Herculano num cenário aparentado a esse de "Ganga Bruta": o casarão cheio de quadros e imagens de mulheres na parede, a alternar modelos de sedução com figuras maternas, olhares da tradição. Compõe-se a mesma ambição de nobreza pelo excesso, no ambiente familiar mortiço que será o cenário do suicídio de Geni. Há outras simetrias a aproximar os dois filmes, além das galerias a insinuar que o sexo aí tem um quê de crepuscular. Em ambos, há o segundo casamento, para recuperar o viúvo após o trauma, e há a constante melancolia masculina, que, no caso do engenheiro, levamos a sério e, no de Herculano, observamos com ironia, em razão de algo na fisionomia, que tem a ver com o bigode. Nos dois filmes, a sugestão de uma engrenagem que os enreda vale como aceno a uma pulsão de morte. Ao contrário do que acontece em "Ganga Bruta", em "Toda Nudez" é Geni o pólo da experiência, e, Herculano, o da tosca inocência. Tosca porque fora de lugar e de hora e porque não cai bem à figura do protagonista a situação final, quando ele é observado por aquele excesso de imagens femininas penduradas na parede. Imagens-espelho desse tipo são freqüentes nos filmes que, entre anos 1960 e 80, adaptaram Nelson Rodrigues, corroborando a estilização do ambiente burguês presente na tela desde os anos 1930, passando pela produção da Vera Cruz. Tais semelhanças expressam motivos ligados a uma cultura de classe que, no caso de Jabor, se apurou como expressão da decadência, tal como em "Guerra Conjugal", com outro estilo. Nos anos 1970, era já outro o olhar dirigido aos foros de distinção de uma camada que se desmoralizou esteticamente (embora eficaz no golpe militar) para a geração do cinema novo e teve tal desmérito decantado com muito brilho pelo tropicalismo ou com muita dor pelo cinema marginal. É no espírito de um cinema alternativo, marginal a seu modo, que a força do cenário se afirma de vez em "A Serpente" (1980-82), de Alberto Magno, filme que destoa de todos os outros ao optar pelo espaço teatral e pelas cenas bloqueadas e ao fazer uso constante de objetos, dispositivos e texturas com efeito simbólico, numa apropriação expressionista do imaginário bíblico. Aqui, a presença fantasmática da galeria de imagens (quadros, fotos, reproduções) tem outra função: confina a figura paterna, um "tableau vivant" [quadro vivo] pendurado na parede. "A Serpente" é dissidência numa década que iniciou com a busca de um naturalismo -"Boca de Ouro" (Avancini, 1990)- e encerrou com a elaboração maneirista, às vezes gótica, da ênfase cenográfica, seja em "Traição" (Arthur Fontes, Cláudio Torres e José Henrique Fonseca, 1998), seja em "Gêmeas" (Andrucha Waddington, 1999). Reflexão sobre o país Novas adaptações estão em curso, e o momento enseja uma reflexão sobre o país atenta às experiências fracassadas, impasses, marca de uma conjuntura rarefeita de projetos, tensionada pelas decepções de toda uma geração. "Traição" e "Gêmeas" selaram um novo paralelo entre os motivos rodriguianos e certa inclinação geral do cinema atual, pontuado pelo desfile amargo de cobradores malsucedidos. Vale, nesse sentido, completar o percurso com "Amarelo Manga" (2002), de Cláudio Assis, que traça um painel de experiências no "ventre" do Recife (cidade natal de Nelson), tingidas pela metáfora viscosa das secreções e texturas amarelas (lembrando as incontinências de "O Casamento"), face grotesca de uma demanda que insiste nos corpos e se faz exprimir a cada minuto, fazendo girar uma máquina de inversões rodriguianas: o moralista é devasso, o criminoso é santo, a despudorada vive em abstinência, angustiada. No centro, o percurso da evangélica, que enseja a provocação direta do próprio Assis no meio do filme: "O pudor é a forma mais inteligente de perversão". Ismail Xavier é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP, crítico de cinema e autor de "O Cinema Brasileiro Moderno" (Paz e Terra). Texto Anterior: + brasil 505 d.C.: Uma outra sociabilidade Próximo Texto: Dramaturgo é tema de mostra e livro Índice |
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