São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004 |
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+ réplica Um dos tradutores de "A Arte Sagrada de Shakespeare " rebate as críticas feitas à sua versão da obra de Martin Lings Alguns descompassos da razão
Mateus Soares de Azevedo
No segundo tratado de "Il Convivio", Dante Alighieri expõe sua
visão acerca dos diversos níveis
de significação de uma obra. Segundo o poeta-filósofo florentino, as principais possibilidades de interpretação são
quatro: o sentido literal, o alegórico, o moral e o anagógico (ou místico). Este último
é, ainda segundo Dante, "o sentido superior", pois expõe o significado espiritual
das coisas.
Barbara Heliodora tem uma opinião diferente. Na resenha "Macbeth e Hamlet
chegam aos céus" (publicada no Mais! de
29/8), ela sustenta que só há uma possibilidade de interpretação: a dela. Sua resenha
de "A Arte Sagrada de Shakespeare - O
Mistério do Homem e da Obra" [ed. Polar], de Martin Lings, exibe, em elevado
grau, arrogância e prepotência.
A resenhista chama o autor de preconceituoso por ousar criticar a arte humanista. Mas ela escamoteia que, ao expor seu
ponto de vista, Lings fornece sólidos argumentos para sustentar o que afirma. Certamente que podemos discordar de suas interpretações ou de aspectos delas, mas não
podemos tachá-lo de "preconceituoso".
Pois o preconceito é uma opinião formada
sem maior ponderação ou conhecimento
dos fatos. A resenhista, sim, pode ser chamada de preconceituosa por não ser capaz
de incorporar uma perspectiva distinta da
convencional.
No livro, foi vertida assim: "Por quê? Que tipo de rei é este?". Não há nada de errado com essa tradução. Mas a resenhista faz uma tempestade em copo d'água com essa ninharia, apenas para afirmar que o correto seria: "Ora, mas que rei é este?". Um outro exemplo de ninharia, esse de "Macbeth" (5, 5, 24-28): "A poor player that struts and frets his hour upon the stage". A resenhista quer forçar sua versão como a única aceitável e mesmo como, supostamente, a "definitiva" -"que se pavoneia e agita". Mas um tradutor como Manuel Bandeira verteu a passagem diferentemente: "Pobre ator que gesticula em cena uma hora ou duas". A resenhista tem razão num ponto. "Everyman" é de fato "Todomundo". Nossa tradução foi esta, mas infelizmente, sem que fosse informado aos tradutores, a revisão decidiu de última hora mudar para "qualquer pessoa". É óbvio que o texto de Shakespeare permite mais do que uma única opção de tradução, mas a resenhista coloca as coisas como se a sua versão fosse o único caminho aceitável. Shakespeare não tem dono! Não foram muitos os que se aventuraram a traduzir o genial bardo para o português. Esses tradutores em geral têm adotado uma postura de humildade, cônscios do tamanho do desafio. Mas essa não é a atitude de Barbara Heliodora. Infelizmente para ela, a qualidade de seu próprio trabalho não está à altura do que ela exige de outros. Vejamos apenas um exemplo, tirado de sua tradução de "Medida por Medida" (Nova Fronteira, 1995). No ato 3, cena 2, temos: "Why should he die, sir? Why? For filling a bottle with a tun-dish". O sentido é: "Por que ele deve morrer, senhor? Por quê? Por encher garrafa com funil". Mas a tradutora confundiu "tun-dish" (funil) com "tuna-fish" (atum). O resultado é uma barbaridade: "Por que haveria ele de morrer, senhor? Por quê? Por botar óleo de atum em funil proibido". De onde veio o óleo de atum? Talvez a tradutora possa nos informar... Tradutor, traidor Não é à toa que os italianos dizem: "Traduttore, traditore" (tradutor, traidor). E a sabedoria popular ensina que quem tem telhado de vidro deve ter cuidado ao brincar com pedras... Como conclusão, vale ressaltar ainda um ponto, que indica má-fé. Na resenha, as críticas dirigem-se apenas a traduções de trechos de Shakespeare; em nenhum momento se analisa a tradução do texto de Martin Lings. A resenhista chega mesmo a reproduzir trechos de nossa tradução [feita em parceria com Sérgio Sampaio], sem fazer nenhum reparo. Mas, no final da resenha, ela generaliza abusivamente, como se a tradução como um todo fosse passível das mesmas "críticas" que faz aos trechos das peças. Aqui, vale esclarecer o leitor - já que a resenhista o confunde- que nosso trabalho foi verter uma obra ensaística sobre a dimensão espiritual de Shakespeare, e não efetuar uma tradução literária de uma tragédia ou comédia, o que é completamente diferente. Ademais, o original inglês também foi publicado, justamente para que o leitor possa cotejar a tradução. A tradução de "A Arte Sagrada de Shakespeare" foi revisada e conferida várias vezes. Contudo, "errare humanum est" e, inevitavelmente, erros e equívocos acontecem. Certamente que nosso trabalho está aberto a críticas, mas não se podem aceitar passivamente tentativas capciosas de desqualificação com as ninharias e as barbaridades citadas. Mateus Soares de Azevedo é jornalista, ensaísta e tradutor. Autor de "Iniciación al Islam" (ediciones 29, Barcelona, 2004) e "Christianity and the Perennial Philosophy" (World Wisdom, EUA, no prelo). Texto Anterior: + livros: O objeto verbal em estado puro Próximo Texto: Lançamentos Índice |
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