São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003 |
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ENCENAÇÃO HIPER-REALISTA COM MEMBROS DO PCC EXIBIDA NO PROGRAMA "DOMINGO LEGAL" DO ÚLTIMO DIA 7 LEVA AO EXTREMO A IDÉIA DE "TELENOVELA DO REAL" E APONTA PARA A NECESSIDADE URGENTE DA REAPROPRIAÇÃO DA TV COMO BEM COLETIVO PÚBLICO A sociedade contra a TV
Ivana Bentes especial para a Folha
Uma emissão televisiva local ou global tem hoje
o poder de provocar uma comoção social. Medo, revolta, celebração e protesto que, em diferentes escalas, sinalizam para um difícil campo de batalha: a disputa pela reapropriação pública de
um bem coletivo, a televisão, e a constituição de uma
"política do simbólico".
A encenação hiper-realista do "Domingo Legal", do
SBT, com uma dupla de "atores-criminosos" usando
óculos escuros de grife sobre um capuz negro, revólver
38 na mão e ameaçando de morte apresentadores de televisão, políticos e figuras públicas, expõe uma comunicação sinistra que é a base de vários outros programas
de TV sensacionalistas que têm como estímulo a violência e o fait divers.
Por que um serviço que é concessão pública abre espaço para criminosos (verdadeiros ou falsos) fazerem
sua "comunicação" em rede nacional? Estamos diante
de fragmentos de uma narrativa global excitante, como
as imagens de Bin Laden, nos seus áudios e videotapes
pré-gravados para a TV Al Jazeera, ou os vídeos com
mensagens de Saddam Hussein, "provando" que está
vivo e é perigoso.
Duas "comunicações" até mesmo "brandas" se comparadas à violência da encenação brasileira. As últimas
fitas de Bin Laden, sem informações de data ou local onde são feitas, têm mostrado um homem envelhecido
andando em uma região montanhosa com um cajado
ou um rifle como apoio. A questão, claro, é como essa
"comunicação" é reinterpretada no imaginário global,
pois, a cada fita divulgada, especialistas da CIA buscam
decifrar mensagens secretas do líder da Al Qaeda e desdobrar sua aparição virtual em possíveis represálias,
atentados e ondas de terror nos EUA e no mundo. Todo
um discurso difuso, terrorismo de Estado, nas suas demandas por mais controle social e confrontos, reforçadas a cada nova emissão da rede árabe.
Na emissão brasileira, a logística de Estado parece ausente, o terrorismo midiático tendo como objetivo a si
mesmo: a audiência e a comercialização do imaginário
do terror como alavancador de lucros imediatos. O que
essas imagens vendem é o terror em estado puro (simbólico) e também um medo difuso comercializado com
a admiração, fascínio e respeito por certos tipos sociais
-violentos, agressivos, desviantes, perigosos e capazes
de demonstrar poder. O criminoso erigido como modelo midiático global, capaz de produzir a comoção impotente da audiência: "Quando a gente pegar ele [Marcelo Rezende, apresentador da Rede TV!], vai ver só. É
isso aqui, oh: [neste momento o falso criminoso do PCC
exibe um revólver calibre 38 para a câmera] bala na cabeça, só na testa" (trecho da entrevista do "Domingo
Legal").
É essa estratégia de captura da atenção do telespectador que vem sendo utilizada de forma abusiva pela televisão brasileira. Uma entrevista sensacionalista de outro assassino, no "Fantástico", da Globo, tempos atrás,
transformava o "maníaco do parque" em "pop star" e
criminoso paranormal e poderia suscitar os mesmos
protestos atuais, mesmo em se tratando de um assassino real, francamente demonizado na edição para parecer ainda mais extravagante, terrível e "fantástico".
Nessa combinação de ficção, jornalismo, fabulação e
dramatização, os teleshows da realidade ("Cidade Alerta", "Repórter Cidadão", "Programa do Ratinho", "Domingo Legal", mas também o "Linha Direta", da Globo)
fazem não apenas uma espécie de teatralização e espetacularização do terror e da insegurança social, mas reforçam discursos bélicos, o racismo, o denuncismo e toda
sorte de pregação moralizante, que inclui frequentemente apologia à pena de morte, ao justiçamento e linchamento, aos preconceitos de toda ordem, num discurso obscurantista e populista. Funcionam ainda como telenovelas do real, com a dramatização do cotidiano da classe média baixa e pobre, mantendo uma relação direta e histórica com a estética do folhetim, da radionovela, do circo e do melodrama.
Ironicamente, enquanto o jornalismo se vale da ficção
para reforçar o terror social, são as telenovelas que, com
todas as ambiguidades, intervêm nos costumes de forma didática, num "show" de cidadania e numa cruzada
iluminista que esclarece sobre drogas, homossexualismo, violência doméstica, ecologia, armas, preconceito
racial, numa eficiente reforma dos costumes que pauta
o Congresso (a campanha do desarmamento em "Mulheres Apaixonadas", repercutindo contra o lobby da
indústria de armas) e chega até os movimentos sociais.
Nos dois casos, o show de ética e cidadania ou o terrorismo de mídia, o que parece estar em questão é o imediatismo do espetáculo e no máximo a satisfação individual, mais que uma política do comum, ampla, constituinte e democratizante. A idéia de uma cidadania pela
mídia -com prestação de serviços, informações de interesse coletivo, formação de "redes" de auxílio material, psicológico, emocional etc.- por enquanto é a face
de um incipiente populismo de mercado, mas que
guarda uma potência de transformação. Pois o regime
de pilhagem sobre o corpo social segue difuso até que
este proteste, caia extenuado ou se aproprie de um dos
mais importantes bens públicos: política do simbólico
que não será feita esperando-se uma autoregulamentação das próprias TVs (mesmo jornalistas esclarecidos
protestaram contra a "censura" do Ministério Público,
que puniu a emissora tirando o programa "Domingo
Legal" do ar por um dia).
Ivana Bentes é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora de "Joaquim Pedro de Andrade" (ed. Relume-Dumará) e organizadora de "Cartas ao Mundo" (Companhia das Letras). Texto Anterior: + televisão: American Idol, o show da vida Próximo Texto: O dia que o Brasil esqueceu Índice |
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