São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003 |
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+ televisão Programa musical que estréia amanhã no Brasil mobilizou a população dos EUA e mostrou uma cultura jovem que superou o ponto de virada da harmonia racial American Idol, o show da vida
Elaine Showalter
A "televisão-realidade" geralmente é desprezada como uma coisa
idiota, vulgar, exploradora e manipulada. Então, seria de alguma
forma sociologia, em algum momento
real? Sim, se for "American Idol" [Ídolo
Americano], o programa que recentemente concluiu sua segunda temporada
de enorme sucesso [que estréia no Brasil
amanhã, às 21h, no canal pago Sony]. Para os leigos: o programa coloca 12 jovens
participantes em disputa por um contrato de gravação de US$ 1 milhão. É verdade que "American Idol" foi adaptado de
uma série britânica, "Pop Idol", que
atraiu um recorde de 14 milhões de votantes e transformou em celebridade instantânea um menino cantor insosso.
País que mudou Os finalistas de "American Idol" incluíam vários candidatos negros, mais dois de famílias birraciais. Apesar dos temores de alguns críticos de que nenhum candidato negro vencesse, Ruben Studdard, de Birmingham, Alabama, levou o prêmio. O distanciamento de Ruben da história racista da cidade onde Martin Luther King iniciou o movimento por direitos civis é um depoimento sobre como o país mudou. Em uma votação tão apertada que lembrou a eleição presidencial de 2000, Clay Aiken, um estudante universitário branco da Carolina do Norte que trabalhava com adolescentes autistas e se tornou o melhor amigo de Ruben, ficou em segundo lugar. Os juízes convidados se alternavam entre deuses da Motown (Lamont Dozier, Gladys Knight) e compositores brancos (Diane Warren, Billy Joel). Os motes de gíria de Jackson ("dawg", como termo de saudação afetuosa, se tornou favorito) domesticaram o idioma rapper proscrito da cultura hip-hop e o reembalaram para a América média. Mas havia um subtexto nessa superfície de harmonia racial e igualdade. Três finalistas e semifinalistas negros ou mestiços foram desclassificados por terem ocultado fichas criminais ou por comportamentos incabíveis para ídolos americanos, sugerindo disparidade de oportunidades e a persistência de diferenças culturais. Um ex-finalista, Corey Clark, acusou os produtores de explorá-lo a fim de conquistar audiência quando um site da web revelou que ele estava sendo processado por agressão; em sua defesa, gravou uma entrevista ao vivo para "American Idol", que ele alegou ter sido editada de modo enganoso. A mudança de local da Inglaterra para os EUA não apenas alterou significados raciais como salientou diferenças nacionais. Para os britânicos, "ídolo pop" significa uma coisa específica: um fenômeno musical embalado para a TV, voltado para os jovens da corrente dominante. Não havia um sentido consciente de identidade nacional na escolha dos vencedores de "Pop Idol". Mas "American Idol" tinha uma agenda diferente, especialmente a segunda série, que coincidiu com a mobilização e o clímax da guerra no Iraque. Para um CD em benefício da Cruz Vermelha americana, dez dos finalistas gravaram um piegas hino reaganesco, "Deus Abençoe os Estados Unidos", que chegou ao topo das paradas de sucesso. Parte da mensagem patriótica era a presença entre os finalistas do robusto fuzileiro naval Josh Gracin, cujos oficiais comandantes sugeriram que ele poderia ser mandado para o Iraque a qualquer momento (não foi). Presença irritante No entanto, em meio a toda essa agitação de bandeiras, a presença irritante de Cowell chocou os juízes americanos, que adotaram uma linha mais dura, assim como a cobertura da guerra pela BBC em tom crítico e até choroso equilibrou e desafiou o excessivo otimismo dos correspondentes da mídia americana. A recusa de Cowell em ser bondoso, delicado, caloroso e brando ou eufemisticamente otimista o transformou numa presença revigorante no programa. Sem se intimidar pelo politicamente correto, ele disse à mestiça Kimberley Locke que seu desempenho melhorou assim que ela mandou alisar e clarear os densos cachos. "Agora sim você ficou bonita", ele disse. E, sem se abalar pelas lágrimas dos perdedores, também foi o único juiz que não amoleceu diante do teste estridente de uma criança negra de 5 anos. "Não achei bom", ele disse francamente. A platéia no estúdio costumava vaiar Cowell, mas sua sinceridade e insistência em critérios elevados fez a coalizão pop de "American Idol" funcionar. Na final do programa, em 21 de maio, mais de 24 milhões de votos foram recebidos por "American Idol". Não podemos comparar a porcentagem de respostas à de uma eleição verdadeira porque os participantes do programa podiam votar mais de uma vez. Mas a estrutura eleitoral do mesmo refletiu as atitudes americanas sobre o processo político e talvez tenha até servido como um referendo da cultura de massa sobre o estado de ânimo do país. Tanto críticos profissionais quanto fãs batendo papo na web especularam sobre blocos eleitorais, campanhas e se a votação foi manipulada. Cowell disse à revista "People" que alguns dos finalistas "atuam como candidatos presidenciais. Se houvesse um bebê na platéia, eles correriam para beijá-lo". Jornais locais fizeram pesquisas de opinião em prol dos candidatos conterrâneos. No final, alguns críticos chegaram a cogitar uma auditoria dos votos, despertando lembranças de contagem de cédulas. Uma terceira série de "American Idol" está prometida para o próximo ano, com rumores de que Paul McCartney será um dos juízes convidados. Aposto que Bush e alguns candidatos democratas estarão na platéia. Esse "reality show" poderia ser uma melhor operação de mídia política do que o [porta-aviões] USS Abraham Lincoln. Elaine Showalter é professora no departamento de inglês da Universidade Princeton. É autora de, entre outros, "Anarquia Sexual" (ed. Rocco). A íntegra deste texto foi originalmente publicada na revista "American Prospect". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Texto Anterior: ET + cetera Próximo Texto: A sociedade contra a TV Índice |
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