São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003 |
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+ livros O historiador francês Jean Delumeau fala sobre "O Pecado e o Medo", que estuda os métodos de culpabilização desenvolvidos pela igreja A construção da ordem terrena
Ronaldo Vainfas
Jean Delumeau é, sem sombra de dúvida, um dos
maiores historiadores franceses de todos os tempos,
embora mais discreto do que muitos que mal se
comparam à sua erudição e talento. As obras de Delumeau (1923) mais conhecidas dos brasileiros, leituras
obrigatórias de todo estudante universitário de história,
foram, por décadas, "Nascimento e Afirmação da Reforma" e "O Catolicismo de Lutero a Voltaire". Dois belíssimos manuais, publicados na coleção "Nouvelle
Clio" [da editora francesa PUF], que puseram em cena
-e em xeque- as duas grandes pastorais da época
moderna.
Entre "História do Medo no Ocidente" e "O Que Sobrou do Paraíso", seus livros exprimem uma forte tensão no imaginário ocidental desde a Baixa Idade Média ao século 18: a tensão entre o medo e a busca de felicidade. Essa é uma preocupação essencialmente religiosa ou diz respeito à consciência individual do homem ocidental? Penso que a tensão entre medo e aspiração à felicidade existe em toda vida humana e em todas as civilizações. Mas de um lado sou um historiador da civilização ocidental e, de outro, esse importante tema não havia sido estudado como tal pelos historiadores. Portanto, quis suprir uma lacuna em uma longa investigação, o que me exigiu 28 anos de trabalho. "O Pecado e o Medo" sublinha a enorme ênfase que a pastoral culpabilizadora da igreja deu ao pecado da luxúria. É possível dizer que o combate à luxúria assumiu o primeiro plano na Contra-Reforma? É possível dizer que as igrejas protestantes foram, em geral, menos obsessivas pelo tema da luxúria? Ou, pelo contrário, a julgar pela violência dos tribunais calvinistas de Genebra ou de Amsterdã contra os homossexuais, por exemplo, foram elas mais repressivas? Ao contrário do que subentende sua pergunta, meu livro "O Pecado e o Medo" não se fixa nas questões sexuais e no pecado da luxúria, que não foram a principal preocupação dos moralistas medievais. É verdade, no entanto, que depois do Concílio de Trento (1545-63) a pastoral católica acentuou sua insistência nesses temas. Aconteceu o mesmo no mundo protestante. Foi uma atitude geral das elites religiosas em todo o Ocidente. O modelo ascético divulgado pela "pastoral do medo" se relaciona diretamente com a valorização da experiência mística e com a introjeção da religião, aspectos importantes da "Devotio moderna". Tal modelo, a seu ver, exprime apenas uma ética da renúncia de si em favor de Deus ou possui aspectos positivos? Não tenho certeza de que o modelo ascético esteja obrigatoriamente ligado à experiência mística. Por outro lado, ele foi valorizado pela "Devotio moderna" e sua obra de referência, a "Imitação de Jesus Cristo", cujo sucesso foi enorme e duradouro. A questão de saber se esse convite à renúncia teve "aspectos positivos" não se coloca para o historiador, que não deve emitir julgamentos de valor. Mas ninguém pode negar que essa espiritualidade da renúncia teve um papel importante na história religiosa cristã; e será sempre assim. O assunto de "O Pecado e o Medo" pode facilmente conduzir, como me conduziu, à história da Inquisição, tema que nesse livro aparece discretamente, apesar do forte parentesco que há entre pecado e heresia. Como pensar a heresia e o papel da Inquisição nessa pastoral culpabilizadora da igreja? A Inquisição não foi meu tema em "O Pecado e o Medo". A Inquisição nasceu de um medo da heresia, da qual por muito tempo se pensou que perturbava a ordem da sociedade. Não esteve forçosamente ligada a uma repressão moralizante, embora seja verdade que às vezes tenha participado disso. Sua obra de conjunto segue diretamente, aprofundando-a, uma das vertentes mais fecundas do movimento dos Annales, sobretudo a obra de Lucien Febvre. Pode-se dizer que sua obra é herdeira dessa vertente mais clássica dos Annales ou se insere mais no que se chamou, nos anos 1970, de Nova História? O ponto de partida de minha pesquisa foi um artigo de Lucien Febvre de 1952, no qual ele desejava que um dia se escrevesse a história do sentimento de segurança -o que fiz em "Rassurer et Protéger" (1989). Mas eu precisava primeiro escrever uma história do medo. Meus modelos foram Febvre, Marc Bloch e Philippe Ariès, isto é, a primeira Escola dos Annales. Depois disso assumi minha independência para compor uma síntese original que conduz o leitor do medo à esperança, pelo caminho da história. Sua obra atribui a progressiva descristianização do Ocidente ao triunfo dessa pastoral culpabilizadora que se foi enraizando por séculos. Seria possível dizer que a laicização ou racionalização progressiva do pensamento ocidental foi um subproduto dessa pastoral, que só admitia a felicidade para os mortos? Essa pastoral fez triunfar o medo sobre o amor, valor inerente à mensagem cristã, como nos mostra "O Pecado e o Medo". Mas o romantismo fez seu esforço em favor do amor, no século 19, embora por via e com motivações totalmente diferentes. O resultado foi de todo modo péssimo, pois, nos dias de hoje, espiritualidade e amor parecem valores muito desprezados no mundo ocidental. O que dizer sobre isso? Acredito efetivamente, e creio tê-lo demonstrado, que o que chamei de "pastoral do medo", dando uma imagem repulsiva de Deus, deformou a mensagem cristã e contribuiu para a descristianização. Concluo que uma nova evangelização não deveria cair nos mesmos erros. Constato felizmente que, hoje em dia, por um lado a palavra cristã não desvaloriza mais a vida terrena e, por outro, insiste prioritariamente no amor. Ronaldo Vainfas é professor de história moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de "Os Protagonistas Anônimos da História" (ed. Campus), entre outros livros. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. O Pecado e o Medo 1.066 págs. (2 volumes), R$ 139,00 de Jean Delumeau. Tradução de Álvaro Lorencini. Editora da Universidade do Sagrado Coração (r. Irmã Arminda, 10-50, CEP 17011-160, Bauru, SP, tel. 0/xx/14/235-7111). Texto Anterior: Os limites do melodrama Próximo Texto: Luzes na cidade Índice |
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