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Em "Os Intelectuais na Idade Média", Jacques le Goff defende que
os séculos 12 e 13 presenciaram uma enorme ebulição do pensamento
Luzes na cidade
Renato Janine Ribeiro
especial para a Folha
Jacques Le Goff, com o já morto Georges Duby
(1919-96), dominou no último meio século o medievalismo francês. Isso não é pouco, se lembrarmos
que nesse período ocorreram duas importantes novidades. A primeira é que recuou a imagem convencional da Idade Média como época do atraso e do preconceito. A segunda é que a história, inclusive a medieval,
tornou-se sucesso de público e de venda. As obras apaixonantes desses dois autores contribuíram para essa
evolução.
É claro que no Brasil e na maior parte do mundo a
opinião menos culta ainda acredita numa Idade Média
que seria das trevas; chamar alguém de medieval continua sendo uma acusação. Mas Le Goff e Duby, escritores ambos, além de historiadores -quero dizer, dominando tanto a linguagem quanto o seu ofício de cientistas-, deram passos para, quem sabe, um dia o adjetivo
"medieval" se tornar elogioso.
É o que vemos neste livro de divulgação de alta qualidade que é "Os Intelectuais na Idade Média", lançado
em 1957, revisado em 1984 e de novo em 2000. Le Goff
concentra seu foco no surgimento das universidades,
em especial de três grandes -Bolonha, Paris (a Sorbonne) e Oxford. A tese principal é a de que por volta
dos séculos 12 e 13 há uma enorme ebulição do pensamento, devido ao aumento de seu peso social, o que já
se anunciava pelo menos desde Abelardo, que mudara
o clima do pensamento europeu. Le Goff reconhece ter
havido uma renascença carolíngia, por volta do ano
800, mas distingue esse movimento -confinado às elites- do que começará com Abelardo. O surgimento do
que ele chama de intelectuais não é ação das elites nem
se restringe a elas.
Aqui está o eixo deste rico livro: como o pensamento
circula pela sociedade, como age sobre ela -e como ele
é produzido? Não é fortuito que no prefácio Le Goff
mencione Gramsci e sua teoria sobre os intelectuais orgânicos, preocupado que foi o marxista italiano em entender a participação social de quem pensa. Daí, também, a evidente simpatia de Le Goff pelos pensadores
dos inícios das universidades. Elas são internacionais,
têm autonomia, não hesitam em fazer greve.
Debates fundamentais se travam então, por exemplo,
entre ensino gratuito e o pago. Os professores tendem
mais ao ensino pago pelos alunos, enquanto a igreja defende a gratuidade, até se dispondo a arcar com o pagamento aos docentes, mas obviamente em troca da submissão deles a ela. O leitor atual assim percebe que esse
não é o mesmo debate que hoje ocorre entre as duas
modalidades de pagamento pelo ensino, pelo aluno ou
pelo Estado. Apreciamos o nascimento das universidades, mas medimos toda a distância que há entre elas e as
nossas.
No final, porém, temos a história de uma decadência.
O outono da Idade Média, para usarmos a bela expressão de Johan Huizinga, é também o declínio das universidades. Elas se subordinam aos poderes dos reis, da
igreja e do dinheiro. Os professores se enriquecem.
Querem ser nobres. Equiparam-se à ordem da cavalaria. Emprestam dinheiro a juros, penhoram os livros
dos alunos seus devedores. O gume de seu pensamento
se embota. Já não têm o vigor de seus antecessores.
E assim, conclui Le Goff, nasce o humanista do século
15, do Quattrocento. Esse personagem tão elogiado
tem, para o autor, uma imagem negativa. Prioriza a retórica sobre a ciência. Isola-se. Sai da cena pública. Escolhe, contra a vida ativa do pensador imerso na cidade,
uma vida contemplativa.
Repito: Le Goff é um dos maiores historiadores atuais.
O mérito inegável deste livro é proporcionar uma excelente introdução ao nascimento dos intelectuais. Mas
isso não nos impede de formular uma crítica. O papel
dos intelectuais é bem delineado, mas suas idéias nem
tanto. O leitor filósofo nota uma certa simplificação dos
embates intelectuais. "Os Intelectuais na Idade Média"
vale mais pela sociologia que deles propõe do que pela
reconstituição de suas idéias. Se Le Goff já simplifica o
pensamento de são Tomás de Aquino e dos averroístas,
ele se torna realmente injusto ao tratar de Marsílio de
Pádua e de Guilherme de Occam (ou Ockham, como
aparece na competente e elegante tradução brasileira).
O papel de ambos foi fundamental, na contestação ao
poder da religião e na elaboração de um mundo leigo.
Umberto Eco que o diga, que se inspirou neste último
para construir seu herói sherlockiano, frei Guilherme
de Canterville, em "O Nome da Rosa".
Por que essa, digamos, deficiência, num livro de tanta
qualidade? Certamente porque a fecundação social pelas idéias é aqui a grande preocupação de Le Goff. Pessoalmente, concordo com esse empenho seu. Mas isso
não implica que autores de alto quilate sejam apresentados como decadentes, só porque um certo ceticismo
substitui a crença no poder da razão. Esse é um defeito
menor, porém provavelmente um sinal de quando, 50
anos atrás, a esquerda era intensamente iluminista e defendia a razão contra os que, dizia ela, promoviam sua
destruição. Hoje, não pensamos mais numa só razão,
mas em várias. Nada disso, porém, reduz a qualidade de
um livro que mostra como surgiram os intelectuais, lutando com os monges, para criar um espaço urbano do
pensamento, o qual iria fazer de liberdade e de pensamento termos quase sinônimos.
Renato Janine Ribeiro é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "A Universidade e a Vida Atual" (Campus). Traduziu "Guilherme Marechal, o Melhor Cavaleiro do Mundo", de Georges Duby.
Os Intelectuais na Idade Média
256 págs., R$ 32,00
de Jacques le Goff. Trad. Marcos de Castro. Ed. José Olympio (r. Argentina, 171, 1º andar, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2060).
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