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"O Sortilégio da Cor" critica a defesa da mestiçagem na sociedade
brasileira presente nas obras de autores como Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro
A ideologia que lava mais branco
Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha
Este livro -"O Sortilégio da
Cor"- merece ser elogiado por
abordar sem papas na língua a supremacia do branco e a opressão
dos negros, demolindo os mitos do homem cordial e da democracia racial na
sociedade brasileira.
Que o leitor atente para a estatística da
desigualdade social como fenômeno
cromático. "Os negros ganham menos
da metade do que ganham os brancos.
Aproximadamente 26% dos negros,
contra 16% dos brancos, ganham menos
de um salário mínimo, enquanto 1% de
negros, contra 4% dos brancos, ganham
mais que dez vezes o valor do salário mínimo. Os afro-brasileiros instruídos ganham menos que os brancos com o mesmo nível de educação e, nas faixas mais
altas de renda, recebem quase seis vezes
menos que os brancos."
De nascença e formação acadêmica
norte-americanas, vivendo há décadas
no Brasil, a autora -na história das nossas idéias- nutre especial admiração
por Guerreiro Ramos e Abdias Nascimento. Ela sublinha em vários momentos sua tese de que a discriminação racial
é o componente básico das desigualdades sociais e que ela não deve ser diluída
na questão de classe social.
Branqueamento
Ideologia que está
nos discursos acadêmicos e nas representações do senso comum, a mestiçagem é uma grande mistificação porque
traz embutida o "ideal de brancura". E
mais: a ideologia da mestiçagem, assentada no suposto critério anti-racista da
etnia, converte o homem mestiço em um
"branco virtual". E o antigo mote, travestido em argumento culturalista, do branqueamento da população de cor. Também não agrada a Elisa Larkin Nascimento a ênfase na conversão do negro
africano em negro brasileiro no decurso
da nossa história.
O xodó epistemológico da autora pelo
sociólogo Guerreiro Ramos está expresso no seu auto-retrato sobre o "niger
sum". O que significa afirmar a auto-estima afro-descendente como totalidade
cultural, ou seja: "O negro no Brasil é povo", no dizer do notável sociólogo Guerreiro Ramos, acrescido da ressalva de
que o negro no Brasil não é o povo.
No livro de Nascimento, a palavra "folclore" ganha sentido invariavelmente
pejorativo, de modo que está ausente a
abordagem de Luis da Câmara Cascudo
sobre o negro na sociedade brasileira,
principalmente porque o assunto é o
processo de sua desafricanização. Por
onde e como o negro africano se torna
negro brasileiro, mas isso não nega em
nós o "made in Africa".
A autora denuncia a ignorância do público intelectual sobre a África, o berço
da humanidade, esse legado sociopsíquico por nós recalcado que veio com o pacote colonial da escravidão; todavia a
miscigenação é um fato empírico irrecusável que já aconteceu no passado, em
que o afro-descendente virou brasileiro
por causa, entre outras coisas, da comida
e da bagaceira. Os orixás baixaram aqui,
mas não alcançaram Portugal.
O lusotropicalismo de Gilberto Freyre
é rejeitado por fazer uma espécie de erotização das desigualdades sociais, assim
como a noção de metaraça ou de sincretismo aparece enquanto ideologia do negro como "branco virtual". O quase
branco.
"Nova Roma"
Darcy Ribeiro também não escapa da crítica do "sortilégio
da cor", tido como um antropólogo do
patriarcalismo e do branqueamento. Até
mesmo o qualificativo "latino" é um termo inapropriado à América do Sul, além
de sua "Nova Roma" ser uma escamoteação da negritude.
A autora pega pesado com a antropologia de Darcy Ribeiro, indispondo-se
contra o seu suposto machismo e sua linguagem "chula". "Ressuscitar Roma é
atualizar o mito ariano", escreve sobre a
morenidade e o povo novo mestiço de
Darcy Ribeiro. De dialética e materialista, a sua antropologia aparece como um
saber conservador ou de direita que legitima e justifica o "supremacismo branco
na cama da democracia racial".
É curioso esse juízo áspero e equivocado acerca do mentalizador do "socialismo moreno". Senador, Darcy Ribeiro
dedicou um número de sua "Carta" a
Zumbi, na qual escreveu um verdadeiro
manifesto sobre "ser negro", vendo nos
quilombos as primeiras tentativas de socialismo na história do Brasil. Injusto seria acusá-lo de racista. Ele nunca quis
que o negro desaparecesse pela mestiçagem. Cito-o: "A democracia racial é possível, mas só é praticável conjuntamente
com a democracia social. Ou bem há democracia para todos ou não há democracia para ninguém, porque, à opressão do
negro condenado à dignidade de lutador
da liberdade, corresponde o opróbrio do
branco posto no papel do opressor dentro de sua própria sociedade".
Darcy achava que negros, índios, mulatos, curibocas, mestiços, brancos, cafusos, somos todos um povo proletário externo destinado a enricar os núcleos cêntricos do capitalismo imperialista.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de
ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de
Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed.
Casa Amarela) e "Biomassa" (ed. Senac).
O Sortilégio da Cor
416 págs., R$ 51,50
de Elisa Larkin Nascimento. Ed. Selo Negro (r. Itapicuru, 513, conjunto 72, CEP 05006-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3862-3530).
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