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Estabilização do corpo da missa católica no século 11 visou a criar uma identidade para o mundo ocidental
A missa como agente político na idade média
Rogério Cezar de Cerqueira Leite
do Conselho Editorial
Do cipoal de teorias conflitantes, relativas à música eclesiástica
ocidental durante o primeiro milênio da era cristã, apenas
três conclusões incontornáveis emergem. Do 6º ao 10º século a memória do
cantochão, que inicialmente se apoiava
exclusivamente em transmissão oral
(auricular, como preferem autores mais
modernos), passa a ter amparo em uma
notação (neumas) que, embora insuficiente para registrar adequadamente a
música, servia como "aide-mémoire"
para os executantes (cantores).
Durante esse mesmo período os inúmeros cantos regionais, inclusive aqueles de proeminência extensa e duradoura, como o moçárabe, o galicanto, o ambrosiano, o antigo romano etc., foram
praticamente erradicados e progressivamente substituídos por um único, o gregoriano, ou deste se aproximaram sensivelmente, mantendo apenas algumas diferenças quase imperceptíveis. O terceiro fenômeno ocorrido à mesma época
foi a estabilização do próprio da missa,
ou melhor, daquela parte que se refere e,
portanto, varia com o evento celebrado.
Essa tríplice observação, embora generalizada entre musicólogos especializados em música antiga, é especialmente
sobrelevada por Kenneth Levy, talvez o
mais eminente especialista da atualidade
[ver, por exemplo, sua compilação de ensaios "Gregorian Chant and the Carolingians", Princeton University Press, 1998,
e seu mais recente artigo, "Gregorian
Chant and the Carolingians", em "Journal of the American Musicological Society", 2003, vol. 56, nº 1, pág. 5, ou "A
New Look at Old Roman Chant", em
"Early Music History", 1, em vol. 19, pág.
81, e 2, em vol. 20, pág. 173].
Estado laico
No que segue vamos argumentar que esses três aparentemente
independentes acontecimentos, assim
como a atraente hipótese avançada por
Levy referente à existência no século 9º
de um único sistema primordial de neumas, precursor de todos os inúmeros outros, implicam a existência de um propósito eminentemente político para a missa. E por política significamos não apenas aquela relativa aos interesses específicos da religião, mas antes de tudo aquela de âmbito do poder do Estado laico.
É obvio que essa percepção é claramente antagônica às percepções de objetivos, meramente exegéticos ou hermenêuticos, da liturgia mais fecunda da
igreja romana em seu primeiro milênio
de existência (Flynn, W.T. "Medieval
Music as Medieval Exegesis", The Scare
Crow Press Inc.). Essa nossa conclusão
será confirmada pela análise da acidentada, por vezes convulsiva, história da
progressiva inclusão do credo no ordinário da missa, durante cinco séculos.
Hoje percebemos a ingenuidade dos
comentaristas que, a partir do 8º ou 9º
séculos, até praticamente meados do século 20, atribuíam à atuação pessoal de
Gregório 1º, o Grande (540-604), um súbito e universal congelamento de uma
particular coleção de cerca de 630 textos
e suas melodias, quando ainda não havia
nem sequer uma notação mneumônica
para a música. O que é possivelmente
verdade é que são Gregório tenha escolhido 630 textos do próprio da missa da
maneira que eram cantados em Roma,
mas sem maior preocupação com a perenidade das respectivas melodias. Essa
estabilização do próprio começa realmente a ocorrer e estará quase que completa no virar do século 7º para o 8º.
Complexo e incoerente
Todavia
essa ocorrência não veio por simples decisão do papado, mas antes por insistência do poder secular, ou seja, dos monarcas carolíngios. Mais especificamente,
como adequadamente documentado, foi
por insistência de Pepino, o Breve (714-768), e seu filho, Carlos Magno (742-814), que o grande passo para a supressão dos cantos regionais e sua substituição pelo canto gregoriano progrediu. E
ingênuos também foram os comentaristas que atribuíram os esforços de Pepino
e Carlos Magno para a estabilização da
missa a propósitos espirituais.
O império carolíngio era um complexo
e incoerente conjunto de povos com diferentes línguas, dialetos, costumes. A
única coisa que tinham em comum era a
religião e esta se manifestava pelos seus
rituais, dentre os quais o mais fecundo
era a celebração da missa. E era certamente, durante essa cerimônia, a da "Eucaristia", da comunhão entre os homens,
sua igreja e Deus, sob a influência hipnótica do ritmo da música, que poderia ser
aplicado o cimento para a construção de
uma verdadeira comunidade, um império unido. É obvio que isso seria mais difícil se cada povoado, cada tribo, cantasse uma missa diferente.
E, para que todos, na vasta extensão do
império carolíngio, cantassem a mesma
missa ou pelo menos a ouvissem, seria
necessária uma notação. Há, portanto,
também razões de ordem política, além
daquelas de natureza técnica propostas
por Levy, para a hipótese de um sistema
de neumas arquetípico, do qual derivariam todos aqueles sistemas de neumas
que surgiram nos séculos 10º e 11. Sob esse aspecto, aliás, pouco diferem as iniciativas dos monarcas carolíngios daquela
do nosso Villa-Lobos e de Getúlio Vargas, que reuniram 40 mil vozes no campo do Vasco da Gama.
Se os meios formais utilizados para a
estabilização do próprio deixam transparecer a intenção do uso da missa como
instrumento político, aqueles que suportaram a fixação do ordinário, séculos depois, e que terminam com a inserção do
credo no cerne da missa, tornam incontestável o papel dessa celebração como
agente político. O credo tem uma natureza completamente diversa daquela dos
demais componentes da missa. Originalmente era uma manifestação de lealdade, de obediência à igreja e a Deus. Note-se que é a única parte da missa que é expressa na primeira pessoa, por ser praticada, durante o batismo, possivelmente.
Conflito litúrgico
Essa qualidade
colide com o caráter eminentemente eucarístico, congregacional da missa. É esse
conflito litúrgico, senão metafísico, que
justifica a resistência do papado em assimilar o credo como parte integrante da
missa. O primeiro registro histórico eloquente dessa disputa se refere à insistência de Carlos Magno para a inserção do
credo na missa e a concessão final expedida por Leão 3º, restrita, todavia, aos
francos. Apenas 200 anos depois, novamente por pressão de um imperador católico, Henrique 2º, da Alemanha, juntamente com o papa Benedito 8º, vem o
Credo finalmente ocupar a posição central que tem hoje na missa, o que com isso estabiliza definitivamente o ordinário
da missa medieval.
Mas quais seriam as razões fundamentais para que o poder secular tão insistentemente promovesse esse "enxerto"
tão insólito? O interesse por um conteúdo eucarístico uniforme da mais popular
e frequente prática é facilmente compreensível como um instrumento para a
criação de uma espécie de identidade para o mundo ocidental. Essa foi possivelmente a motivação para a atuação do Estado carolíngio. A estabilização do próprio, aliás, também servia à igreja, como
organização política. Mas o que justificaria a perseverança do poder secular na
inclusão do credo? A única explicação
que nos ocorre é a conveniência para o
Estado da manifestação de obediência,
de submissão, de lealdade em relação à
igreja, à essa época aliada incondicional
do império carolíngio e de seus sucessores ottonianos.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite é físico, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas e membro do Conselho Editorial da Folha.
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