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COM TRABALHOS DE PERFIS POLÍTICO E ANTIINSTITUCIONAL, "COLETIVOS" COMO
LARANJAS, ATROCIDADES MARAVILHOSAS, GRUPO E TRANSIÇÃO LISTRADA SE
APROPRIAM DAS ESTRATÉGIAS SITUACIONISTAS DOS ANOS 60 E PROMOVEM UM
REVIVAL INSPIRADO EM ARTISTAS COMO HÉLIO OITICICA, ARTUR BARRIO E
CILDO MEIRELES
A explosão do a(r)tivismo
Divulgação
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"Plantação de Postes", trabalho do "coletivo" GRUPO, de Belo Horizonte |
Juliana Monachesi
free-lance para a Folha
Em maio de 1970 o artista Artur Barrio realizou
nas ruas do Rio de Janeiro o trabalho-processo "4
Dias 4 Noites", uma experiência de deriva pela cidade que existe apenas como memória. A deambulação feita com o objetivo de, por meio do desgaste físico, "agudizar a percepção" não foi registrada em textos ou fotografias. Trata-se de uma obra de arte radical,
que agrega ao caráter antiinstitucional e de crítica à
mercantilização da arte da produção de Barrio um aspecto anti-historicizante. O cenário da arte contemporânea brasileira neste início de milênio vive uma fase
em muito inspirada no situacionismo e ativismo de
Barrio.
Laranjas, Atrocidades Maravilhosas, GRUPO, Transição Listrada, Núcleo Performático Subterrânea, Entorno, entre outros, conquistam aos poucos espaço no circuito das artes. São "coletivos" de artistas sediados, respectivamente, em Porto Alegre, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Fortaleza, São Paulo e Brasília, cuja atuação
está voltada para ações diretas de encontro e embate
com o público e o espaço, em geral por meio de intervenções abertas que chamam a atenção para paisagens
esquecidas das cidades, remetendo a estratégias situacionistas (movimento surgido em Paris nos anos 60 que
propunha uma revitalização do urbano pela arte; por
meio da "psicogeografia", os situacionistas buscavam
uma religação afetiva com os espaços desvitalizados).
"Há muito a arte não fala mais do que vínhamos chamando arte. A narrativa gerada por esse sistema hegemônico, onde uma certa idéia de arte é mantida por
meio de suas instituições (crítica, museus, salões) chegou a seu fim. É isso que certos críticos, como Arthur
Danto, chamam de fim da arte", afirma a respeito da cena artística atual a museóloga e curadora Cristina Freire, cujo foco de pesquisa no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo é a coleção de arte conceitual, desabrigada até poucos anos no acervo do museu.
Com postura antiinstitucional, articulação em grupos, busca de espaços independentes para expor seus
trabalhos, produção de viés político e crítico essencialmente, jovens artistas em todo o Brasil fazem pensar em
um revival da arte brasileira dos anos 60 e 70, que, em figuras como Hélio Oiticica, Barrio e Cildo Meireles, conheceu uma guerrilha contra o regime militar, contra o
vazio no sistema das artes, contra a reificação da obra de
arte etc. Hoje, a guerrilha acredita atacar a máquina da
globalização neoliberal, contra o desmanche das instituições culturais e contra o canibalismo da produção
artística pelo sistema comercial.
Para o curador e crítico de arte carioca Luiz Camillo
Osório, não se trata de um revival: "Há uma sintonia
com aquelas estratégias, com aquelas ações, uma vontade de inserção na vida; há uma articulação entre arte e
política, mas é outro contexto, outra realidade". As tensões culturais e políticas à flor da pele, em sintonia com
manifestações em Seattle e Gênova, seriam o principal
motor desta geração. Seu papel, reinventar a politização. "Nós vivemos, nas áreas artística e política, uma
crise vocabular, uma crise de sentido, uma crise das categorias legadas pela tradição. Um tal vazio semântico
exige uma postura, uma vontade de inserção que está
presente nesses grupos", afirma.
O debate sobre o ressurgimento de uma arte política e
de articulações à margem do sistema das artes que, no
início deste século, ainda engatinhava (Panorama 2001,
Rumos Visuais 2001/2002, que mapearam alternativas
de inserção), em menos de dois anos pôde se fundamentar na consolidação de dezenas de "coletivos" pipocando pelo Brasil, que diluem a autoria da obra de arte e problematizam a realidade social e cultural da região
em que estão sediados. Exemplo emblemático foi a ação
promovida pelo grupo Entorno, de Brasília, às vésperas
da eleição presidencial: uma lavagem da praça dos Três
Poderes. O flyer (estratégia de divulgação comum entre
esses grupos) dizia apenas "venha de branco, traga uma
vassoura e um balde", menção nenhuma à "arte".
O PhP (Phoder Paralelo) protagonizou ações mais sarcásticas durante a campanha eleitoral no Rio de Janeiro: pregou
desenhos infantis de genitais em outdoors de campanha. A
transgressão cavou espaço até em coluna social de um jornal
carioca, que, sob o título "guerrilha", questionava: "Há dúvida quanto ao que polui mais a paisagem -se os cartazes originais ou o novo adereço". O movimento foi gestado no Rés
do Chão, espaço independente dirigido pelo artista Edson
Barrus que funciona há um ano no RJ. Se a efervescência de
grupos e articulações "marginais" tem seus catalisadores, Edson Barrus é sem dúvida um dos principais, ao lado da paulistana Graziela Kunsch, que coordena o também independente
Centro de ContraCultura, em São Paulo, em atividade desde
2001.
O embrião do Rés do Chão foi uma experiência intitulada
"Açúcar Invertido" entre maio e junho de 2002 na Funarte do
Rio de Janeiro. Convidado para organizar uma exposição naquele espaço, Barrus propôs uma "quarentena de artistas para manifestar sintomas da arte contemporânea", período de
residência e convivência no qual a preocupação maior seriam
os exercícios artísticos, e não seus resultados, ou seja, as
"obras". A ocupação foi polêmica, com os artistas do grupo
Urucum (Macapá), por exemplo, transportando seis troncos
de árvores retiradas das margens do rio Amazonas para o espaço da vivência, que foram sendo destruídos com motosserras ao longo do evento.
Desde então o Rés do Chão passou a funcionar como uma
espaço sem vínculos com instituição nenhuma.
"Um projeto artístico em que os presentes cozinham e comem, os convidados trazem um incenso, uma câmera ou
uma bebida. Rituais de convivência com música ao vivo e
dança. É a festa, dessa maneira, na nossa prática, como resposta aos pesares da alienação e à "morte da arte". Uma prática
que libere nosso poder e que transforme nossas vidas através
do que criamos espontaneamente e sem nenhuma idéia do
resultado. É simplesmente começar a chegar e sentir e interagir com os outros para criar "situações" baseadas no que cada
pessoa está fazendo no momento (...) para fornecer um novo
modelo de significação produzido ativamente, e não passivamente (isto é, institucionalmente) recebido; e criar algo que
possa ser discutido, mas nunca entendido, pelo olho treinado
e controlador, algo sem potencial comercial, mas de valor
além de seu preço, que depende da situação, não do estilo ou
conteúdo", segundo manifesto publicado no site www.resdochao.hpg.com.br
Barrus explica que a marginalização do artista é o critério de
escolha para os convites que faz. Sobre a oscilação de qualidade entre os trabalhos apresentados no Rés do Chão, o artista é
categórico: "A qualidade é um parâmetro de exclusão". Ali,
encontram-se diluídas as características reconhecíveis de arte
e de espaço de arte: o Rés do Chão é também, e antes de tudo,
a casa de Barrus, que vivencia constantemente processos de
desterritorialização. "Acredito na precariedade, na falta de
autoria, na apropriação", afirma ele, que vê um encontro entre essa nova forma de produzir/pensar arte e Barrio ou artistas de atuação semelhante.
Para Cristina Freire, "se Artur Barrio está sendo considerado hoje um modelo, ficou por muitos anos à margem. Isso
quer dizer que testemunhamos já há algumas décadas a saturação de uma certa noção de obra, de artista, de circulação e
distribuição do que possa ser considerado obra de arte.
Nas experiências coletivas, em sua opinião, "o cotidiano e as formas de circulação mais simples são privilegiados. Trata-se de uma arte que se pauta no processo,
mais do que numa obra acabada. Os gestos (contra os
salões, as ordens instituídas remontam às origens da
instituição dos museus e salões no século 18) são ainda
hoje simbólicos, pois há uma intencionalidade que sugere que a lógica da identidade (individual) é superada
pela lógica da identificação (coletiva). Diferentemente
dos anos 1970, quando a estética e a ética tocam os limites da subjetividade de maneira contundente para retornar para o social".
Como seu ponto de observação privilegiado é o museu, Cristina Freire aponta uma evidente e profunda
inadequação entre as categorias da arte e os procedimentos adotados pelas instituições (dos regulamentos
de salões de arte contemporânea aos procedimentos
museológicos). "A crítica, por sua vez, também sofre de
afasia ao ter dificuldade para nomear, o que equivale
aqui a interpretar/assimilar poéticas contemporâneas.
Esse descompasso cria lacunas nas coleções dos museus, isto é, nos registros de nossa memória cultural e
por conseguinte na história da arte. Que sabem as gerações mais novas, a partir de nossos acervos públicos,
dos grupos que também tomavam a cidade como campo de investigação, assalto, em São Paulo nos anos 70?"
A referência aqui é a grupos que surgiram no final da
década de 70 e início dos anos 80, como Viajou sem Passaporte, 3Nós3 e Manga Rosa. Formado por Hudinilson Júnior, Rafael França e Mario Ramiro, o 3Nós3 espalhava pelas ruas de São Paulo o que denominava "interversões", ações cujo sentido era inverter a percepção
da paisagem urbana, muito mais do que simplesmente
"intervir" nela: no início de 1979, por exemplo, o grupo
realizou um encapuçamento de esculturas públicas
com sacos de lixo, que pretendia denunciar o olhar sedado das pessoas que passavam por marcos, como o
Monumento às Bandeiras, sem de fato os ver. Em julho
de 79, protagonizaram a ação "X Galeria", em que vedaram as portas das galerias de arte paulistanas com fita
crepe formando um X e deixaram em cada uma o bilhete: "O que está dentro fica o que está fora se expande".
O coletivo carioca Atrocidades Maravilhosas segue a
mesma filosofia. Atuante desde 2000 e transformado
em grupo pelas instituições culturais que passaram a
convidá-lo para participar de mostras, esse agrupamento aleatório de artistas ficou famoso por espalhar lambe-lambes esteticamente intrigantes pelas ruas do Rio
de Janeiro. Por iniciativa de Alexandre Vogler (e em
parceria com a Fundição Progresso, onde foram produzidos os 5.000 cartazes/serigrafias), 20 artistas realizaram em abril de 2000 a intervenção "ATR(i)Ocidades
Maravilhosas", brincadeira com o slogan do governo
Cesar Maia ("Rio Cidade Maravilhosa"). O nome do
"grupo" derivou do título.
O trabalho de Vogler, "O Que os Detergentes Fazem
com a Mão de uma Mulher", pregado no muro do cemitério do Caju, mostrava um par de mãos com unhas
pintadas de vermelho protagonizando uma cena pornográfica. Ducha aplicou sobre o logo da Coca-Cola
(adulterado para Coca-Coca) carreiras de cocaína, propondo talvez uma citação das "Cosmococas" de Hélio
Oiticica. No ano seguinte, o grupo seria catapultado à
mais importante exposição de arte contemporânea brasileira depois da Bienal de São Paulo, o Panorama
MAM, por ocasião da qual realizou diversas ações no
espaço urbano em São Paulo: lambe-lambes com a bula
de fabricação do anthrax impressa, enterro de garrafas
de cachaça na rua; algodão espalhado em faixas de pedestres, configurando a obra "Andando na Nuvem".
O cinismo em relação à institucionalização é coerente:
"A cidade engole tudo; a dimensão pública não está na
obra, e sim no registro", afirma Vogler, o que fornece
uma razão para o Atrocidades transitar entre a rua e o
museu. Outra afirmação do artista: "Eu faço meu circuito, não preciso esperar convite nem babar ovo para ninguém", o que esclarece, por outro lado, seu constante
ativismo artístico: durante todo o ano de 2001, Vogler
organizou -com os artistas Adriano Melhen, Aimberê
Cesar, Ducha, Guga Ferraz, e Roosivelt Pinheiro- um
evento chamado "Zona Franca".
Tratava-se de uma ocupação artística independente,
espécie de exposição mesclada a serão performático,
sem curadoria, sem regras, que acontecia semanalmente na Fundição Progresso: "Nós convidávamos os artistas dizendo assim "tudo o que você não pode fazer em
uma galeria, você pode fazer no Zona Franca", e a ocupação resultou em uma grande desordem de anarquistas apresentando trabalhos aleatoriamente". Em janeiro de 2003, um evento em moldes semelhantes foi realizado no Armazém (cais do porto, RJ), com o título "Alfândega". São ações de resistência, organizadas ao sabor das oportunidades.
O Centro de ContraCultura, em São Paulo, incorpora
à preocupação de fomentar alternativas ao circuito estabelecido de arte o aspecto de vivência e trocas afetivas
entre os protagonistas desse circuito ampliado. Aberto
em agosto de 2001 o espaço defendia "abrigar artistas
que abominam toda idéia de Arte". Graziela Kunsch
convidava "coletivos" para fazer uma residência de sete
dias na casa; ao final, acontecia uma confraternização,
em que eram a apresentados resultados da experiência.
Por vezes esses resultados assemelhavam-se a exposições tradicionais, que ela não desvaloriza: "Os grupos
tinham liberdade total para fazer o que quisessem, e eu
continuo acreditando na arte, o problema é que, desde
que a arte existe, o "produto" vigente é elitista, mercantil,
e alguém, ao ser "artista", acaba sempre negando o direito do outro de ser artista também. Por isso é que eu
aposto mais em ações diretas, diluídas no coletivo e na
realidade, e não em uma realidade que existe à parte".
Para o artista gaúcho Jorge Menna Barreto, do grupo
Laranjas, o surgimento de tantos grupos no Brasil decorre também de uma sensação de que a linguagem artística não dá mais conta da realidade nem do indivíduo. "Juntar-se a outros é também juntar inconformidades, parte de uma urgência de falar de coisas que não
encontram voz num movimento solo. Há somas e subtrações no grupo, as autorias são somadas e cria-se um
novo autor, expandido. O grupo legitima sussurros individuais, oferece uma rede de sustentação para iniciativas que de outra forma ruiriam", afirma.
Entre os trabalhos do Laranjas, destacam-se a ação no
Centro de ContraCultura, em 2002, que consistiu em
tingir a caixa d'água da casa com pigmento comestível
laranja, gerando "desenhos intraparedes", ativando a
casa pelas entranhas, fazendo reverberar poesia no "espectador" ao se realizarem atos banais de abrir a torneira ou dar a descarga. Outra ação foi somar os pesos corpóreos dos quatro integrantes que participavam da
ação, pegar o equivalente a esse peso em laranjas e fazer
suco numa esquina de Porto Alegre para servir aos passantes. "Mas sempre fico com uma sensação de que essas ações são quixotescas e já nascem fadadas a promover somente arranhões numa estrutura que já há tempos se divorciou do que move o processo artístico", diz.
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