São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003 |
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+ brasil 503 d.C. As duas vidas de Carpeaux
Luiz Costa Lima
Regime austrofascista Embora sua colaboração tenha sido curta, pois o ditador seria assassinado em 1934, parece correta a informação citada por Souza Ventura de que Karpfen atuou "muito ativamente em favor do catolicismo político e do regime austrofascista". A aproximação com o fascismo pareceria a Karpfen, judeu convertido, a maneira de afastar a Áustria tanto do perigo comunista como do expansionismo nazista. Mas a esperança logo desapareceria, ao assassínio de Dolfuss seguindo-se a aproximação de Mussolini com Hitler. Poucos anos depois, Karpfen/Carpeaux teria de fugir para não morrer. Até aqui, apenas sintetizamos o que Souza Ventura descreve no capítulo "A Viena de Karpfen". A partir de agora, quando passa a tratar da obra brasileira de Carpeaux, nome que então adota, as idéias do pesquisador parecem bastante problemáticas. Elas assentam em uma afirmação central: "A fase austríaca e a brasileira estão unidas por uma continuidade de pensamento: a visão de mundo barroco-católica da casa da Áustria". A dificuldade em aceitar a afirmação, em sua plenitude, decorre, de início, da própria reviravolta que Carpeaux necessitara fazer para que sobrevivesse no país que o acolhe. Na Áustria, doutorara-se, em 1925, em química e sua atividade principal era a ação política, com um acentuado caráter católico e conservador. Seu interesse pela literatura seria então secundário ou suplementar e nada indicava que viesse a se encaminhar para a profissão de crítico literário. Ela será assumida no Brasil, provavelmente pela impossibilidade de outro meio com que entrasse nos jornais, que garantiriam sua sobrevivência. Insuficiência Ora, embora o livro tenha sido inicialmente objeto de uma tese de doutorado em teoria literária e literatura comparada, o autor não mostra conhecimento suficiente na área a que Carpeaux se dedicaria. Daí a dificuldade extra do autor em demonstrar o acerto de sua afirmação capital. Sua insuficiência é de várias ordens. A mais geral consiste na determinação do lugar que Carpeaux ocuparia. Diz-se, ainda na "Introdução": "(Carpeaux) desloca-se entre os dois pólos da crítica enquanto gênero: do método sem método dos homens de letras à abordagem técnica que caracteriza a crítica acadêmica de nossos dias". "Abordagem técnica" a seguir confundida com "exercício de retórica", contra o qual Carpeaux se insurgiria, procurando "orientar sua crítica literária na direção de uma anti-retórica, pois acreditava que o comentário sobre literatura não podia priorizar a teoria em detrimento da obra e do leitor". Já é difícil engolir que a crítica acadêmica de hoje seja uma "abordagem técnica". Pode-se objetar à sua prática por vários ângulos. Mas este é inédito. Acrescentar que essa seja um "exercício de retórica" e que a retórica esteja em "priorizar a teoria" são teses ou absurdas ou revolucionárias. Mas a curiosidade de sabê-lo murcha ante identificação seguinte: "A proximidade entre retórica e barroco vem sendo atestada desde a Antiguidade clássica, com a arte retórica de Aristóteles". Há pois um barroco contemporâneo a Aristóteles e reconhecido por ele?! Um barroco intemporal que justificaria a codificação retórica? Transformações Ao lado de tais afirmações, surgem outras. Enumero apenas duas: "Um dos principais desafios para a crítica literária reside justamente no caráter de universalidade da obra de arte" (não tenho tempo de consultar o "Dictionnaire des Idées Reçues"; se algo de semelhante lá não estiver, foi por distração de Flaubert). "Carpeaux procurava (...) não transformar a obra literária em expressão alegórica de verdades filosóficas implícitas nem buscar o significado de uma obra nos acontecimentos biográficos de seu autor" (seria preciso Carpeaux para que não o fizesse?). Se é lamentável que tais passagens tenham sido escritas, louve-se, contudo, que indo de encontro à sua tese, o autor constate: "As relações entre experiência religiosa e expressão literária em Carpeaux transitam de uma visão da religião como dogma para uma posição mais atenuada: o fenômeno religioso como consciência, presença latente no espírito de alguém cuja religiosidade também sofreu transformações". Se estas são reconhecidas, onde fica a "continuidade de pensamento"? Não peçamos porém do autor mais do que ele pode dar: o resgate da fase austríaca de Carpeaux é mérito seu. Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.". Texto Anterior: "As Bacantes" Próximo Texto: + livros: Os bastidores do bel canto Índice |
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