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"A Paixão segundo a Ópera", de Jorge Coli, analisa as
premissas do gênero e a relação entre música e palavra
Os bastidores do bel canto
Ivo Barroso
especial para a Folha
Prepare-se para gostar de ópera,
esse gênero musical há muito considerado extinto ou em via de extinção, mas que sempre consegue
se reabilitar na preferência do público,
"redescoberto" pelas novas gerações ou
pela mudança dos enfoques sob os quais
seus detratores antigos o vinham observando. Uma grande parte dos preconceitos ou das idiossincrasias em relação ao
significado e ao valor artístico da ópera, e
as maneiras errôneas de como apreciá-la, certamente desaparecerão com a leitura deste harmonioso (em mais de um
sentido) livro -"A Paixão segundo a
Ópera"-, em que Jorge Coli recolheu
seus artigos, conferências e algumas novas observações sobre a chamada cena lírica.
Mas não pense que se trata de um livro
doutrinário (de e) para melômanos, um
desses toques de congraçamento de uma
igrejinha de aficionados, ansiosos por
suspirar e bater palmas ao mínimo trinado de um soprano coloratura. Nem de
um compêndio sobre a história da ópera,
seus compositores e intérpretes famosos
ou dos teatros incendiados por suas récitas inesquecíveis.
Sobre um gênero que evoca quase sempre aspectos saudosistas ou deslumbramentos incontidos, a prosa afinada e regida de Coli parece uma exceção às antigas expectativas, abrindo um cenário novo e ventilado para a análise vertical dos
valores operísticos e mesmo uma discussão filosófico-estruturalista sobre os vínculos entre a palavra e a música.
Divertimento e erudição
Mas,
uma vez demonstrada no capítulo inicial
a familiaridade do musicólogo com as
teorias mais avançadas da composição
sonora (Hanslick, Ruwet, Adorno, John
Cage etc.), o autor entra propriamente
nos bastidores da ópera, escolhendo para tanto a abordagem de alguns temas
presentes na formação de qualquer apreciador do bel canto. E, ao fazê-lo, Jorge
Coli demonstra suas qualidades excepcionais de conferencista, oferecendo,
dessa vez a leitores, um cromatismo de
observações críticas junto de curiosidades e flashes biográficos não muito conhecidos, que dão ao texto um amálgama de erudição e divertimento.
Seu ensaio sobre o "Otelo", de Verdi
-começando com a comparação entre
o texto shakespeariano e o inspirado libreto de Boito (do qual seriam de citar os
versos temáticos "E tu m'amavi per le
mie sventure,/ ed io t'amavo per la tua
pietà", que traduzem impecavelmente os
famosos "She lovd me for the dangers I
have pass't, / And I lov'd her that she pity
them"); sua análise das motivações do
ciúme do mouro, do caráter de Iago (cujo enfático "Credo" foi criação da dupla
Boito-Verdi e que deve ter causado certamente um total desconforto à religiosa
platéia milanesa daquele 5 de fevereiro
de 1887); as discussões sobre a "adequação" do romance entre o negro Otelo e a
pálida Desdêmona (o tenor [racista"
Tacchinardi cantou o papel sem nenhuma maquiagem de tonalidade escura e
fez imprimir no programa achar "impossível que uma jovem amável caia
apaixonada por um mouro cujo aspecto
só pode ser considerado horrível e aterrador"); o paralelo que faz
entre a ópera de Verdi e a
de Rossini, escrita 70 anos
antes, em que a narrativa
shakespeariana é grandemente adulterada, com a
heroína morrendo apunhalada e o "lenço" se
transformando em "carta
de amor" para evitar o
emprego de palavras
"vulgares" numa ação
dramática; e terminando
com a demonstração a
bem dizer gráfica da relação muito íntima, conseguida nessa ópera por
Verdi, entre as palavras e
a música, "bastando lembrar a vertiginosa descida
cromática na palavra beva" do brinde de Iago-
tem a força de uma tese de doutoramento insuflada pela paixão de um amante
de ópera e criteriosamente contida pelos
seus dotes de escritor.
Ópera e trabalho
Outro capítulo
belamente realizado é o das relações da
ópera com o trabalho, um tema raramente presente nos enredos líricos, mas
que permite ao autor pertinentes ilações
extraídas das falas de "Louise", de Charpentier, e de "Il Tabarro", de Puccini, que
Jorge Coli não se detém em classificar de
obra-prima para satisfação daqueles que
não ousavam ainda dizê-lo e para espanto de seus detratores ("É preciso repetir
muitas vezes para aqueles que ficaram
surdos por causa de seus preconceitos,
que Puccini é imenso compositor",
acrescentará ele).
O livro termina com um paralelo entre
Carlos Gomes e Villa-Lobos, em que são
discutidos o caráter "europeizante" do
primeiro e o "nacionalístico" do segundo: um capítulo que encerrará grandes
surpresas para aqueles que ainda vêem
esses dois grandes compositores sob o
cômodo enfoque tradicional...
Nestes tempos de penúria operística
no país, com tendências a chegar a "fome
zero", o livro de Coli surge como o prenúncio de uma sonhada "saison".
Ivo Barroso é poeta e tradutor, autor de "A Caça
Virtual" (Record), entre outros livros.
A Paixão segundo a Ópera
138 págs., R$ 18,00
de Jorge Coli. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís
Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/
3885-8388).
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