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Câmeras sem fronteiras
Duas coletâneas discutem as obras do diretor Andrea Tonacci e gêneros como terror e comédia no Brasil
FERNÃO PESSOA RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Duas boas coletâneas, lançadas recentemente na
área de estudos de
cinema, debatem a
questão do gênero e das fronteiras de formas narrativas cinematográficas.
"Serras da Desordem", com
organização de Daniel Caetano, trata do documentário de
mesmo nome, de Andrea Tonacci, lançado recentemente.
Cinco textos e uma entrevista compõem o livro. Debruçam-se sobre o filme que marca o retorno ao longa-metragem de um dos principais diretores brasileiros.
Tonacci começou dirigindo
um clássico do cinema marginal, "Bang Bang", para depois
enveredar por uma carreira de
documentarista em que retrata, de modo bem particular, a
vida de comunidades indígenas
isoladas ("Conversas no Maranhão", "Os Araras").
Em "Serras da Desordem",
abandona a forma mais fenomenológica, por assim dizer, da
representação documentária,
para compor seu filme dentro
de uma tradição forte do documentário contemporâneo, a
exploração de personagem (no
caso o índio Carapiru e sua fascinante história de vida).
Para tal, desloca a posição de
recuo de "Conversas no Maranhão", as tentativas reflexivas
de "Os Araras" (entregar a câmera ao índio), para assumir a
interferência livre na composição da alteridade, conformando o personagem à sua medida,
sem deixar de usar o compasso
da personalidade e do "estar na
tomada" de Carapiru.
Os textos da coletânea, de
modo geral, debatem-se com
uma falsa questão, em que podemos notar dilemas éticos da
antropologia visual que marcaram a segunda metade do século 20.
Imagina-se uma espécie de
grau zero da linguagem cinematográfica para definir o que
é documentário e, como a narrativa nunca consegue atingir
esse ponto, necessita-se de
conceitos como ficção, realidade ou verdade para fechar o
campo.
Questão deslocada
Mas a tradição documentária
traz em seu âmago, desde o início, formas variadas de encenação, seja em estúdio, em locação ou no que podemos chamar de encenação-atitude, na própria da tomada abrindo-se para
a indeterminação do acontecer.
Tonacci, em "Serras da Desordem", trabalha livremente
com a encenação (como antes
dele fizeram Flaherty, Grierson, Laurentz, Morris e tantos
outros), como é próprio da tradição documentária.
Estaria por isso fazendo mais
ou menos documentário?
A questão está deslocada. O
paradigma de Tonacci nesse filme é o mesmo de Jean Rouch
em seus documentários mais
bem-sucedidos, abrindo largo
espaço para a encenação e improvisação diante da câmera.
Num paradigma ético mais
fechado, marcado pelas exigências desconstrutivas da antropologia, ambos acabam emparedados e os críticos, enrolados
em conceitos compósitos para
tentar abordá-los.
O que falta reconhecer é que
Tonacci (como também Rouch,
em outra sintonia) é antes de
tudo cineasta, e não antropólogo, e sua obra se relaciona com
a tradição do cinema e do documentário que passa muito
além, ou aquém, de exigências
metodológicas ou éticas das
humanidades. Mesmo uma
análise fílmica com cacoetes
descritivos não consegue esgrimir essa evidência.
"Cinema de Bordas", com organização de Bernadette Lyra e
Gelson Santana, trabalha com
um horizonte percorrido pela
bibliografia anglo-saxã em estudos de cinema, denominado
estudos de gênero.
Não o gênero politicamente
correto de feministas ou gays,
mas o gênero enquanto estrutura narrativa e de produção
recorrente (western, ficção
científica, terror, musical, comédia etc).
Em "Cinema de Bordas", o
diálogo é com a cultura "trash"
do cinema brasileiro. Para isso,
é construído um conceito de
utilidade duvidosa a que se dá o
nome de "cinema de bordas".
Como o filé da proposta está
no gênero, muitas vezes comendo-se pela borda não se
chega ao que interessa. A ausência de bibliografia mais centrada na questão do gênero impede o aprofundamento do recorte.
De qualquer modo, cabe ao
livro o mérito de se debruçar de
modo inédito sobre uma produção pouco conhecida.
O resgate do "trash" nacional
vai além de obras de José Mojica Marins ou do terrir de Ivan
Cardoso, para desembocar, por
exemplo, na impagável pornochanchada "O Pasteleiro", de
David Cardoso, com roteiro de
Ody Fraga e John Doo atuando
como o facínora pasteleiro antropófago.
Questão central
Se a questão é o cinema de
gênero, vamos a ele com coragem, inclusive porque a questão das bordas do gênero está
no âmago da discussão sobre o
tema -tanto na teoria do cinema quanto na bibliografia mais
antiga da teoria literária e do
drama.
As bordas do gênero, as bordas do documentário, se revelam em sua riqueza quando deixamos de lado preocupações de heterodoxia para nos centrarmos, sem os sobressaltos normativos que herdamos do século passado, na diversidade caleidoscópica das formas narrativas cinematográficas.
FERNÃO PESSOA RAMOS é professor livre-docente no departamento de cinema da Universidade Estadual de Campinas, autor de "Mas Afinal... O Que É Mesmo Documentário?" (Senac).
SERRAS DA DESORDEM
Organização: Daniel Caetano
Editora: Azougue (tel. 0/xx/21/ 2240-8812)
Quanto: R$ 25,90 (144 págs.)
CINEMA DE BORDAS
Organização: Bernadette Lyra e Gelson Santana
Editora: A Lápis (tel. 0/xx/11/ 2275-6011)
Quanto: R$ 33 (224 págs.)
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