São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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Leia trecho da peça "O Círculo de Giz Caucasiano", de Brecht, em tradução de Manuel Bandeira

UMA ÁSPERA TRAVESSIA

Recitante
E fugindo dos Couraceiros
Após vinte e dois dias de caminhada,
Ao pé das geleiras do Janga-Tau
Grucha Vachnadze adotou a criança
como filho.

Músicos
A pobrezinha adotou como filho
o pobrezinho.

Grucha Vachnadze, agachada à beira do
rio meio gelado, colhe água nas mãos
para levá-la ao menino.

Grucha (canta)
Já que em ninguém encontraste
Coração amigo,
Tens que, à falta de outro amparo,
Te arranjar comigo.

Porque, ao peito carregando-te,
Dias e dias, nas pedras
Da estrada os pés me feri,
Porque o leito era tão caro,
Fiquei gostando de ti,
Não posso passar sem ti.

Tira a camisinha fina,
Veste este trapo, lavar
Te vou e te batizar
Na água gelada do rio,
Meu lindo! Tens que aguentar.

Retira a camisinha de linho e envolve-o
num trapo.

Recitante
Quando a Grucha Vachnadze,
perseguida pelos Couraceiros,
Chegou à pinguela da geleira, que dá
passagem para as aldeias da vertente leste,
Entoou a canção da pinguela apodrecida, arriscou as duas vidas.

Vento. Surge na penumbra a pinguela
da geleira. Como um cabo se partiu, ela
está meio pensa sobre o abismo. Uns
criadores, dois homens e uma mulher,
permanecem indecisos diante da pinguela. Quando a moça chega com a
criança, um dos homens tenta pegar com
uma vara o cabo pendente.

Primeiro Homem - Calma, não te apresses, moça. Não é possível passar na pinguela no estado em que ela está.

Grucha - Mas eu preciso ir com a criança pra casa do meu irmão, do outro lado.

Mulher - Precisa! Precisa! Eu também preciso, porque tenho que ir comprar dois tapetes em Atum, e é preciso também que outra mulher os venda, porque ela perdeu o marido. Mas posso fazer o que preciso? E ela pode? Andrei está remando há duas horas para pescar o cabo, e ainda que consiga, como é que vai prendê-lo?

Primeiro Homem - (apurando o ouvido) Cale-te, parece que estou ouvindo qualquer coisa.

Grucha - (alto) A pinguela não apodreceu completamente. Acho que posso tentar atravessar.

Mulher - Eu não tentaria, mesmo que estivesse fugindo do demônio em pessoa. É um suicídio!

Primeiro Homem - (gritando) Olá!

Grucha - Não chame! (À mulher) Diga a ele pra não chamar ninguém!

Primeiro Homem - Mas há gente lá embaixo. Talvez alguém que se perdeu.

Mulher - E por que não queres que ele chame? És culpada de alguma coisa? Vais fugindo?

Grucha - Bem, tenho que lhes dizer. Estou fugindo dos couraceiros. Derrubei um com uma pancada na cabeça.

Segundo Homem - Esconde as mercadorias!

A mulher esconde um saco atrás de uma pedra.

Primeiro Homem - Por que não disseste logo isto? (Aos outros) Se eles põem a mão nela, vão fazê-la em pedaços!

Grucha - Me deixem passar.

Segundo Homem - Impossível: são 2.000 pés de profundidade.

Primeiro Homem - Mesmo que pudéssemos agarrar o cabo, não adiantava. Podíamos segurá-lo com as mãos, mas depois os couraceiros atravessariam da mesma maneira.

Grucha - Saiam da frente!

(Apelos a alguma distância) "Por ali, subindo!"

Mulher - Eles vêm perto. Mas tu não podes passar a pinguela com a criança. É quase certo que ela vai desabar. Olha só pra baixo.

Grucha olha para baixo. Ouvem-se novamente as vozes dos Couraceiros embaixo.

Segundo Homem - Dois mil pés.

Grucha - Pior que isso são aqueles homens.

Primeiro Homem - Não deves fazê-lo, mesmo que fosse por causa da criança. Tens o direito de arriscar a tua vida, mas não a da criança.

Segundo Homem - E depois, com ela ainda é mais peso.

Mulher - Talvez seja bom que ela passe mesmo. Dá-me o menino, eu o escondo e tu passas a pinguela sozinha.

Grucha - Isso não. Somos unha e carne. (Para o menino) Para a vida e para a morte. (canta)

Fundo é o abismo, filhinho,
Frágil a pinguela, mas
Não somos nós que escolhemos,
Meu lindo, o nosso caminho.

Tens que ir por aquele
Que eu achei pra ti,
Comer a comida

Que tenho pra ti.

Quatro porções temos,
Uma eu comerei,
Mas se três te bastam,
Isso é o que eu não sei.

Vou tentar.

Mulher - Isso se chama tentar o senhor.

Vozes embaixo.

Grucha - Por favor joguem fora a vara, senão eles agarram o cabo e passarão também.

Pisa na pinguela, que vacila. A Mulher solta um grito receando que a pinguela desabe. Mas Grucha prossegue e chega à outra margem.

Primeiro Homem - Ela passou!

Mulher - (que se tinha ajoelhado e rezado quando Grucha atravessa a pinguela, em tom mau) Mas foi um pecado contra o senhor.

Chegam os Couraceiros. A cabeça do Caporal envolta em panos.

Caporal - Viram passar uma moça com uma criancinha?

Primeiro Homem - (enquanto o segundo atira a vara no abismo) Vimos sim, passou para o outro lado e a pinguela não aguenta os senhores.

Caporal - Cabeça de Pau, vais me pagar esta.

Grucha, da outra margem, ri e mostra a criancinha aos Couraceiros. Em seguida, prossegue o caminho. Venta.

Grucha - (olhando para Miguel) Não tenhas medo do vento, ele também é um pobre diabo. Seu trabalho é empurrar as nuvens, e quase sempre tem frio.

Começa a nevar.

Grucha - E a neve, Miguel, também não é o que há de pior. Seu trabalho é cobrir os pinheiros para que não morram no inverno. E agora vou cantar-te uma cantiga que fala de ti, escuta!

Canta.

Teu pai é um bandido;
Tua mãe, uma puta:
Verás a teus pés
O homem mais honrado.

O filho do tigre
Dará aveia às potrinhas;
O filho da cobra,
Leite pras mãezinhas.



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