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Leia trecho da peça "O Círculo de Giz Caucasiano", de Brecht, em tradução de Manuel Bandeira
UMA ÁSPERA TRAVESSIA
Recitante
E fugindo dos Couraceiros
Após vinte e dois dias de caminhada,
Ao pé das geleiras do Janga-Tau
Grucha Vachnadze adotou a criança
como filho.
Músicos
A pobrezinha adotou como filho
o pobrezinho.
Grucha Vachnadze, agachada à beira do
rio meio gelado, colhe água nas mãos
para levá-la ao menino.
Grucha (canta)
Já que em ninguém encontraste
Coração amigo,
Tens que, à falta de outro amparo,
Te arranjar comigo.
Porque, ao peito carregando-te,
Dias e dias, nas pedras
Da estrada os pés me feri,
Porque o leito era tão caro,
Fiquei gostando de ti,
Não posso passar sem ti.
Tira a camisinha fina,
Veste este trapo, lavar
Te vou e te batizar
Na água gelada do rio,
Meu lindo! Tens que aguentar.
Retira a camisinha de linho e envolve-o
num trapo.
Recitante
Quando a Grucha Vachnadze,
perseguida pelos Couraceiros,
Chegou à pinguela da geleira, que dá
passagem para as aldeias da vertente leste,
Entoou a canção da pinguela apodrecida, arriscou as duas vidas.
Vento. Surge na penumbra a pinguela
da geleira. Como um cabo se partiu, ela
está meio pensa sobre o abismo. Uns
criadores, dois homens e uma mulher,
permanecem indecisos diante da pinguela. Quando a moça chega com a
criança, um dos homens tenta pegar com
uma vara o cabo pendente.
Primeiro Homem - Calma, não te apresses, moça. Não é possível passar na pinguela no estado em que ela está.
Grucha - Mas eu preciso ir com a criança pra casa do meu irmão, do outro lado.
Mulher - Precisa! Precisa! Eu também
preciso, porque tenho que ir comprar
dois tapetes em Atum, e é preciso
também que outra mulher os venda,
porque ela perdeu o marido. Mas posso
fazer o que preciso? E ela pode? Andrei
está remando há duas horas para pescar
o cabo, e ainda que consiga, como é que
vai prendê-lo?
Primeiro Homem - (apurando o ouvido) Cale-te, parece que estou ouvindo
qualquer coisa.
Grucha - (alto) A pinguela não apodreceu completamente. Acho que posso
tentar atravessar.
Mulher - Eu não tentaria, mesmo que estivesse fugindo do demônio em pessoa. É um suicídio!
Primeiro Homem - (gritando) Olá!
Grucha - Não chame! (À mulher) Diga a
ele pra não chamar ninguém!
Primeiro Homem - Mas há gente lá embaixo. Talvez alguém que se perdeu.
Mulher - E por que não queres que ele
chame? És culpada de alguma coisa? Vais
fugindo?
Grucha - Bem, tenho que lhes dizer. Estou fugindo dos couraceiros. Derrubei um com uma pancada na cabeça.
Segundo Homem - Esconde as mercadorias!
A mulher esconde um saco atrás de uma pedra.
Primeiro Homem - Por que não disseste
logo isto? (Aos outros) Se eles põem a
mão nela, vão fazê-la em pedaços!
Grucha - Me deixem passar.
Segundo Homem - Impossível: são 2.000 pés de profundidade.
Primeiro Homem - Mesmo que pudéssemos agarrar o cabo, não adiantava. Podíamos segurá-lo com as mãos, mas depois os couraceiros atravessariam da
mesma maneira.
Grucha - Saiam da frente!
(Apelos a alguma distância) "Por ali, subindo!"
Mulher - Eles vêm perto. Mas tu não podes passar a pinguela com a criança. É quase certo que ela vai desabar. Olha só pra baixo.
Grucha olha para baixo. Ouvem-se novamente as vozes dos Couraceiros embaixo.
Segundo Homem - Dois mil pés.
Grucha - Pior que isso são aqueles homens.
Primeiro Homem - Não deves fazê-lo, mesmo que fosse por causa da criança.
Tens o direito de arriscar a tua vida, mas não a da criança.
Segundo Homem - E depois, com ela
ainda é mais peso.
Mulher - Talvez seja bom que ela passe
mesmo. Dá-me o menino, eu o escondo
e tu passas a pinguela sozinha.
Grucha - Isso não. Somos unha e carne.
(Para o menino) Para a vida e para a
morte. (canta)
Fundo é o abismo, filhinho,
Frágil a pinguela, mas
Não somos nós que escolhemos,
Meu lindo, o nosso caminho.
Tens que ir por aquele
Que eu achei pra ti,
Comer a comida
Que tenho pra ti.
Quatro porções temos,
Uma eu comerei,
Mas se três te bastam,
Isso é o que eu não sei.
Vou tentar.
Mulher - Isso se chama tentar o senhor.
Vozes embaixo.
Grucha - Por favor joguem fora a vara,
senão eles agarram o cabo e passarão
também.
Pisa na pinguela, que vacila. A Mulher
solta um grito receando que a pinguela
desabe. Mas Grucha prossegue e chega à
outra margem.
Primeiro Homem - Ela passou!
Mulher - (que se tinha ajoelhado e rezado quando Grucha atravessa a pinguela, em tom mau) Mas foi um pecado contra o senhor.
Chegam os Couraceiros. A cabeça do Caporal envolta em panos.
Caporal - Viram passar uma moça com uma criancinha?
Primeiro Homem - (enquanto o segundo atira a vara no abismo) Vimos sim,
passou para o outro lado e a pinguela não aguenta os senhores.
Caporal - Cabeça de Pau, vais me pagar esta.
Grucha, da outra margem, ri e mostra a
criancinha aos Couraceiros. Em seguida,
prossegue o caminho. Venta.
Grucha - (olhando para Miguel) Não tenhas medo do vento, ele também é um
pobre diabo. Seu trabalho é empurrar as nuvens, e quase sempre tem frio.
Começa a nevar.
Grucha - E a neve, Miguel, também não é
o que há de pior. Seu trabalho é cobrir os
pinheiros para que não morram no inverno. E agora vou cantar-te uma cantiga
que fala de ti, escuta!
Canta.
Teu pai é um bandido;
Tua mãe, uma puta:
Verás a teus pés
O homem mais honrado.
O filho do tigre
Dará aveia às potrinhas;
O filho da cobra,
Leite pras mãezinhas.
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