São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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Naturalidade da dicção do poeta brasileiro se aliou à "grandeza shakespeariana" da peça do dramaturgo alemão, que está sendo lançada pela ed. Cosac & Naify

BRECHT POR BANDEIRA

José Antonio Pasta Jr.
especial para a Folha

Na estréia de "O Círculo de Giz Caucasiano", em 1963, no Rio de Janeiro, podia-se ler no programa da peça (incluído na presente edição) esta declaração de seu ilustre tradutor brasileiro, o poeta Manuel Bandeira: "Quando fui convidado por Edmundo Moniz a traduzir a peça "Der Kaukasische Kreidekreis" [1944", de Bertolt Brecht, aceitei o convite mais para comprazer ao amigo. Não imaginava que ia ter um dos maiores gozos intelectuais que já me proporcionou a minha atividade de tradutor. O mesmo gozo que tive traduzindo o "Hamlet" de Shakespeare, porque "O Círculo de Giz" é coisa verdadeiramente shakespeariana". Logo adiante, aceitando em parte a correção de um outro "amigo letrado", que negava essa aproximação, o poeta confirmará que a peça de Brecht tem "a grandeza shakespeariana, mas sem prejuízo da originalidade, e por esta é eminentemente brechtiana".
Para variar, com a despretensão de costume, Bandeira acertou. Não cabe desenvolvê-lo aqui, o que pediria um estudo à parte, mas de fato, entre as chamadas "grandes peças" de Brecht, "O Círculo de Giz" talvez seja aquela em que seu longo e contraditório diálogo com Shakespeare tenha chegado a um grau de maturação mais desenvolvido. A riqueza e a independência da matéria, que nela se expande luxuriante em todas as direções, nunca inteiramente dominada pela idéia; o caráter contraditoriamente "vivo" das personagens; as inversões éticas, vizinhas do paradoxo; as exigências humanas, em meio a um painel histórico que banha em selvageria etc., tudo isso na peça é shakespeariano, sem prejuízo de encontrar, nela, epicizado e distanciado, o que é propriamente brechtiano e nada fácil de realizar.
O "gozo intelectual" a que se refere Bandeira, perceptível na extraordinária beleza de sua tradução, certamente terá algo a ver com essa dimensão shakespeariana que ele tão bem reconhece. Mas a "impressionante" "naturalidade vernácula" dessa tradução, corretamente apontada pelos editores da peça, faz pensar em uma afinidade mais "natural" e intensa, profundamente enraizada no próprio universo poético de Bandeira.
Uma primeira e fundamental matriz dessa afinidade pode ser encontrada, acredito, no próprio motivo central de "O Círculo de Giz". De certo modo, Bandeira, ele mesmo, o aponta, ao consagrar a maior parte de sua breve apresentação a um resumo da peça. Vale a pena vê-lo e conferir suas ênfases:
"Uma lenda chinesa, a mesma história do juízo de Salomão, inspirou a Brecht esta peça, cujo peso maior repousa em Grucha, a pobre moça que com sobre-humanos sacrifícios, inclusive o do seu amor ao soldado Chachava, salva, por ocasião de uma revolta política, a vida do filhinho do Governador assassinado, e em Azdak, o "juiz dos pobres" pobre diabo, beberrão e corrupto, que no entanto cria em pleno caos uma curta idade de ouro na justiça caucasiana.
Grucha, a mãe de criação, e a viúva do Governador, a mãe de sangue, disputam o pequenino Miguel. A mãe de sangue abandonara o petiz no "fuja quem puder" da revolta, mas restabelecida a ordem social reivindica-o. Azdak resolve o caso mandando traçar no chão um círculo de giz e colocando no centro o menino, que as duas mães, cada uma segurando-o por uma das mãos, devem puxar para fora do círculo e para o seu lado. Grucha perde, porque não queria machucar a criança, empregando toda a sua força. Mas Azdak, o juiz dos pobres, o cínico, o beberrão, o corrupto, compreende que quem merece ficar com o menino é Grucha, das duas mulheres a verdadeiramente maternal (...)."
Como se vê, no coração da peça está o motivo da maternidade, que, no entanto, não deve ser confundida com a mera concepção. Conforme acentua a distinção entre a mãe de sangue e a que cria o menino, trata-se da idéia da maternidade como cuidado ou, no sentido mais forte do termo, como criação da criança. Poucas idéias serão tão reveladoras do núcleo mais concentrado da poesia de Bandeira quanto essa concepção do cuidado, do oferecer-se ao outro como possibilidade de sua criação, isto é, de sua inserção em um mundo propriamente humano -concepção essa que encontra na maternidade plenamente exercida sua realização mais completa, a um tempo "natural" e "cultural". Nesse sentido é que um Adorno podia falar no "amor materno" como a "matriz de todas as utopias".
Mas a especificidade e a centralidade dessa questão em Bandeira revela-se luminosamente em um belo estudo do psicanalista Tales Ab'Sáber (1). Ao analisar, por exemplo, o poema "Debussy", em que o olhar do poeta sustenta o adormecer de uma criança que brinca com um novelozinho de linha, ele diz: "Uma criança que é ao criar o sentido de si e do mundo, só é integralmente quando tal sentido é sustentado no olhar e no colo de um outro, o olhar vivo e não invasivo do próprio poeta, que simplesmente está presente e torna sensível e significante o gesto sensível e significativo do bebê. É no retorno do olhar da mãe, capaz de ver o humano de sua própria criança, que seu gesto humano ganha sentido, e o humano se diferencia de um bicho, cuja gestualidade nada significa no plano simbólico.
Tal percepção bandeiriana da natureza original do sentido, do gesto simbólico (poético) originário e de sua sustentação necessária em um outro, em um ambiente humano que o torne possível, é uma radical percepção da natureza fundante, para a cultura, de uma inclinação de cuidado e oferecimento humano anterior, sem a qual nenhum sentido pode se dar. Manuel Bandeira pesquisa o que funda o humano no estado conceitual do desamparo, e não é parte ocasional dessa opção o fato de as classes populares brasileiras serem mantidas historicamente em estado de radical desamparo social (...)". Na Grucha brechtiana, Bandeira certamente encontrou uma inesperada reflexão de suas concepções mais caras e a transpôs para o português como a uma parte de si mesmo.
Não sem alguma surpresa, talvez, que no seu texto se entrevê, uma vez que é bem conhecido o anticomunismo de Bandeira, que em pleno "Itinerário de Pasárgada" invectiva a "boçal estética imposta pelo comunismo russo aos seus escravos". Isso não o impediu, entretanto, de encontrar extraordinário "gozo intelectual" ao traduzir uma peça cujas cenas iniciais, que emolduram a história de Grucha e do seu menino, passam-se em um colcós soviético, na presença de um comissário de Estado e com direito a citação de Maiakóvski.
A possibilidade do encontro entre o grande poeta brasileiro, anticomunista, e o poeta alemão, marxista, se deu sobre o fundo comum de uma crítica da desumanização, identificada em seu nível mais radical: aquele em que a própria maternidade, concebida como o ato mesmo da constituição do humano, se revela mais e mais impossível. No plano da composição, essa afinidade se tece, também, na comunidade profunda de formas narrativas populares, de origem medieval, familiares ao poeta alemão e ao pernambucano. Dessas matrizes comuns dá testemunho, em língua portuguesa, a peça de Gil Vicente, "O Juiz da Beira", em que se encontra bastante desenvolvido o mesmo motivo do juiz paradoxal em que tomará corpo a figura de Azdak.
Para Brecht, tratava-se, em "O Círculo de Giz", de "pôr a nu os horrores de uma época em que o sentimento maternal pode se tornar uma fraqueza suicida": como Grucha sabe, ao arriscar-se em esforços desmedidos, isto é, maternos, na criação do menino, "para aqueles que são humanos, os tempos maus fazem dos sentimentos de humanidade um risco". A longa reflexão de Brecht sobre a "terrível tentação da bondade" em ambientes perversos, que tem também um momento forte em "A Boa Alma de Se-Tsuan" (1938-40), culminava, então, contra o pano de fundo de uma Europa destruída pela guerra nazista, na qual ele identificava bem as novas aventuras do capital.
Em Bandeira, a perquirição poética e amorosa do cuidado nascia de sua funda experiência da calamidade brasileira e do desamparo que lhe é próprio -o de um país para o qual as crianças dos trabalhadores nunca importaram, porque ele sempre importou seus trabalhadores já criados: primeiro, de África, depois, da Europa dos miseráveis e, mais tarde, de seu próprio Nordeste famélico. Do lado de lá, um capitalismo que, ao consumar-se, se revelava como barbárie; do lado de cá, um capitalismo que, por jamais se completar, nunca saiu dela. Dessa conjunção de extremos nasce o momento de identificação desses dois grandes poetas, mas também sua diferença.
Em Brecht, a radicalização das contradições sociais dará lugar a uma poética de cortes nítidos, em que a dominação será chamada pelo próprio nome; em Bandeira, uma poética de imensa delicadeza, conscientemente "diminuída", na qual as contradições encontram-se dolorosamente entranhadas, tratará de responder à pior das dominações -aquela que não se declara, que não diz o seu nome e, assim, elude o conflito. O aprisionamento nesse mau infinito é o nosso círculo de giz.


Nota: 1. Trata-se do ensaio "Mimese do Humano, Crítica da Desumanização - Uma Leitura de Manuel Bandeira", que fará parte do livro "Littérature et Modernisation au Brésil" (Presses de la Sorbonne Nouvelle, França).


José Antonio Pasta Jr. é professor de literatura brasileira na USP e autor de "Trabalho de Brecht" (ed. Ática).


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