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Naturalidade da dicção do poeta brasileiro se aliou à "grandeza shakespeariana" da peça do dramaturgo alemão, que está sendo lançada pela ed. Cosac & Naify
BRECHT POR BANDEIRA
José Antonio Pasta Jr.
especial para a Folha
Na estréia de "O Círculo de Giz Caucasiano",
em 1963, no Rio de Janeiro, podia-se ler no
programa da peça (incluído na presente edição) esta declaração de seu ilustre tradutor brasileiro, o poeta Manuel Bandeira: "Quando fui convidado por Edmundo Moniz a traduzir a peça "Der Kaukasische Kreidekreis" [1944", de Bertolt Brecht, aceitei o
convite mais para comprazer ao amigo. Não imaginava
que ia ter um dos maiores gozos intelectuais que já me
proporcionou a minha atividade de tradutor. O mesmo
gozo que tive traduzindo o "Hamlet" de Shakespeare,
porque "O Círculo de Giz" é coisa verdadeiramente shakespeariana". Logo adiante, aceitando em parte a correção de um outro "amigo letrado", que negava essa aproximação, o poeta confirmará que a peça de Brecht tem
"a grandeza shakespeariana, mas sem prejuízo da originalidade, e por esta é eminentemente brechtiana".
Para variar, com a despretensão de costume, Bandeira
acertou. Não cabe desenvolvê-lo aqui, o que pediria um
estudo à parte, mas de fato, entre as chamadas "grandes
peças" de Brecht, "O Círculo de Giz" talvez seja aquela
em que seu longo e contraditório diálogo com Shakespeare tenha chegado a um grau de maturação mais desenvolvido. A riqueza e a independência da matéria,
que nela se expande luxuriante em todas as direções,
nunca inteiramente dominada pela idéia; o caráter contraditoriamente "vivo" das personagens; as inversões
éticas, vizinhas do paradoxo; as exigências humanas,
em meio a um painel histórico que banha em selvageria
etc., tudo isso na peça é shakespeariano, sem prejuízo
de encontrar, nela, epicizado e distanciado, o que é propriamente brechtiano e nada fácil de realizar.
O "gozo intelectual" a que se refere Bandeira, perceptível na extraordinária beleza de sua tradução, certamente terá algo a ver com essa dimensão shakespeariana que ele tão bem reconhece. Mas a "impressionante"
"naturalidade vernácula" dessa tradução, corretamente
apontada pelos editores da peça, faz pensar em uma afinidade mais "natural" e intensa, profundamente enraizada no próprio universo poético de Bandeira.
Uma primeira e fundamental matriz dessa afinidade
pode ser encontrada, acredito, no próprio motivo central de "O Círculo de Giz". De certo modo, Bandeira, ele
mesmo, o aponta, ao consagrar a maior parte de sua
breve apresentação a um resumo da peça. Vale a pena
vê-lo e conferir suas ênfases:
"Uma lenda chinesa, a mesma história do juízo de Salomão, inspirou a Brecht esta peça, cujo peso maior repousa em Grucha, a pobre moça que com sobre-humanos sacrifícios, inclusive o do seu amor ao soldado Chachava, salva, por ocasião de uma revolta política, a vida
do filhinho do Governador assassinado, e em Azdak, o
"juiz dos pobres" pobre diabo, beberrão e corrupto, que
no entanto cria em pleno caos uma curta idade de ouro
na justiça caucasiana.
Grucha, a mãe de criação, e a viúva do Governador, a
mãe de sangue, disputam o pequenino Miguel. A mãe
de sangue abandonara o petiz no "fuja quem puder" da
revolta, mas restabelecida a ordem social reivindica-o.
Azdak resolve o caso mandando traçar no chão um círculo de giz e colocando no centro o menino, que as duas
mães, cada uma segurando-o por uma das mãos, devem puxar para fora do círculo e para o seu lado. Grucha perde, porque não queria machucar a criança, empregando toda a sua força. Mas Azdak, o juiz dos pobres, o cínico, o beberrão, o corrupto, compreende que
quem merece ficar com o menino é Grucha, das duas
mulheres a verdadeiramente maternal (...)."
Como se vê, no coração da peça está o motivo da maternidade, que, no entanto, não deve ser confundida
com a mera concepção. Conforme acentua a distinção
entre a mãe de sangue e a que cria o menino, trata-se da
idéia da maternidade como cuidado ou, no sentido
mais forte do termo, como criação da criança. Poucas
idéias serão tão reveladoras do núcleo mais concentrado da poesia de Bandeira quanto essa concepção do cuidado, do oferecer-se ao outro como possibilidade de
sua criação, isto é, de sua inserção em um mundo propriamente humano -concepção essa que encontra na
maternidade plenamente exercida sua realização mais
completa, a um tempo "natural" e "cultural". Nesse
sentido é que um Adorno podia falar no "amor materno" como a "matriz de todas as utopias".
Mas a especificidade e a centralidade dessa questão
em Bandeira revela-se luminosamente em um belo estudo do psicanalista Tales Ab'Sáber (1). Ao analisar, por
exemplo, o poema "Debussy", em que o olhar do poeta
sustenta o adormecer de uma criança que brinca com
um novelozinho de linha, ele diz: "Uma criança que é ao
criar o sentido de si e do mundo, só é integralmente
quando tal sentido é sustentado no olhar e no colo de
um outro, o olhar vivo e não invasivo do próprio poeta,
que simplesmente está presente e torna sensível e significante o gesto sensível e significativo do bebê. É no retorno do olhar da mãe, capaz de ver o humano de sua
própria criança, que seu gesto humano ganha sentido, e
o humano se diferencia de um bicho, cuja gestualidade
nada significa no plano simbólico.
Tal percepção bandeiriana da natureza original do
sentido, do gesto simbólico (poético) originário e de sua
sustentação necessária em um outro, em um ambiente
humano que o torne possível, é uma radical percepção
da natureza fundante, para a cultura, de uma inclinação
de cuidado e oferecimento humano anterior, sem a qual
nenhum sentido pode se dar. Manuel Bandeira pesquisa o que funda o humano no estado conceitual do desamparo, e não é parte ocasional dessa opção o fato de
as classes populares brasileiras serem mantidas
historicamente em estado de radical desamparo social
(...)". Na Grucha brechtiana, Bandeira certamente encontrou uma inesperada reflexão de suas concepções
mais caras e a transpôs para o português como a uma
parte de si mesmo.
Não sem alguma surpresa, talvez, que no seu texto se
entrevê, uma vez que é bem conhecido o anticomunismo de Bandeira, que em pleno "Itinerário de Pasárgada" invectiva a "boçal estética imposta pelo comunismo
russo aos seus escravos". Isso não o impediu, entretanto, de encontrar extraordinário "gozo intelectual" ao
traduzir uma peça cujas cenas iniciais, que emolduram
a história de Grucha e do seu menino, passam-se em
um colcós soviético, na presença de um comissário de
Estado e com direito a citação de Maiakóvski.
A possibilidade do encontro entre o grande poeta brasileiro, anticomunista, e o poeta alemão, marxista, se
deu sobre o fundo comum de uma crítica da desumanização, identificada em seu nível mais radical: aquele em
que a própria maternidade, concebida como o ato mesmo da constituição do humano, se revela mais e mais
impossível. No plano da composição, essa afinidade se
tece, também, na comunidade profunda de formas narrativas populares, de origem medieval, familiares ao
poeta alemão e ao pernambucano. Dessas matrizes comuns dá testemunho, em língua portuguesa, a peça de
Gil Vicente, "O Juiz da Beira", em que se encontra bastante desenvolvido o mesmo motivo do juiz paradoxal
em que tomará corpo a figura de Azdak.
Para Brecht, tratava-se, em "O Círculo de Giz", de
"pôr a nu os horrores de uma época em que o sentimento maternal pode se tornar uma fraqueza suicida": como Grucha sabe, ao arriscar-se em esforços desmedidos, isto é, maternos, na criação do menino, "para
aqueles que são humanos, os tempos maus fazem dos
sentimentos de humanidade um risco". A longa reflexão de Brecht sobre a "terrível tentação da bondade"
em ambientes perversos, que tem também um momento forte em "A Boa Alma de Se-Tsuan" (1938-40), culminava, então, contra o pano de fundo de uma Europa
destruída pela guerra nazista, na qual ele identificava
bem as novas aventuras do capital.
Em Bandeira, a perquirição poética e amorosa do cuidado nascia de sua funda experiência da calamidade
brasileira e do desamparo que lhe é próprio -o de um
país para o qual as crianças dos trabalhadores nunca
importaram, porque ele sempre importou seus trabalhadores já criados: primeiro, de África, depois, da Europa dos miseráveis e, mais tarde, de seu próprio Nordeste famélico. Do lado de lá, um capitalismo que, ao
consumar-se, se revelava como barbárie; do lado de cá,
um capitalismo que, por jamais se completar, nunca
saiu dela. Dessa conjunção de extremos nasce o momento de identificação desses dois grandes poetas, mas
também sua diferença.
Em Brecht, a radicalização das contradições sociais
dará lugar a uma poética de cortes nítidos, em que a dominação será chamada pelo próprio nome; em Bandeira, uma poética de imensa delicadeza, conscientemente
"diminuída", na qual as contradições encontram-se
dolorosamente entranhadas, tratará de responder à
pior das dominações -aquela que não se declara, que
não diz o seu nome e, assim, elude o conflito. O aprisionamento nesse mau infinito é o nosso círculo de giz.
Nota: 1. Trata-se do ensaio "Mimese do Humano, Crítica da Desumanização - Uma Leitura de Manuel Bandeira", que fará parte do livro "Littérature et Modernisation au Brésil" (Presses de la Sorbonne Nouvelle, França).
José Antonio Pasta Jr. é professor de literatura brasileira na USP e autor de "Trabalho de Brecht" (ed. Ática).
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