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+ sociedade
Filósofo defende que moradores de países desenvolvidos doem 1% de sua renda para
acabar com a pobreza no mundo
O preço relativo da miséria
Peter Singer
especial para a Folha
Mais de 1 bilhão de pessoas vive hoje com menos que o
equivalente em poder aquisitivo, em seus próprios países, a US$ 1 por dia nos EUA. No ano 2000, norte-americanos fizeram doações privadas para todo o tipo de ajuda externa totalizando cerca de US$ 4 por pessoa ou aproximadamente US$ 20 por família. Por meio de seu governo, eles doaram outros US$ 10 por pessoa ou US$ 50 por família. Isso perfaz um total de US$ 70 por família.
Em comparação, após a destruição do World Trade Center, a Cruz Vermelha
norte-americana recebeu tanto dinheiro que acabou por abandonar qualquer
tentativa de examinar de quanta ajuda os potenciais recebedores precisavam. Eles
traçaram uma linha cruzando a parte baixa de Manhattan e ofereceram a todos
que viviam abaixo daquela linha o equivalente a três meses de aluguel (ou, se
fossem proprietários de seus próprios apartamentos, três meses de hipoteca e
custos de manutenção). Se os recebedores alegassem ter sido afetados pela destruição das torres gêmeas, eles receberiam dinheiro para fazer as compras do
mês, também.
A maioria dos residentes na área sob a linha não teve de se mudar ou ser evacuada, mas a eles foi oferecida assistência no aluguel ou uma hipoteca especial. Voluntários da Cruz Vermelha montaram mesas nas recepções de edifícios de preço elevado, onde vivem analistas financeiros, advogados e estrelas do rock, para informar os moradores da oferta. Quanto maior fosse o aluguel que a pessoa pagava, mais dinheiro ela recebia. Nova-iorquinos, ricos ou não, vivendo na parte baixa de Manhattan no 11 de setembro de 2001, receberam em média US$ 5.300 por família.
A diferença entre US$ 70 e US$ 5.300 pode ser uma sólida indicação do peso
relativo que os norte-americanos dão aos interesses de seus compatriotas em
comparação ao que eles dão às pessoas de outros lugares. Mas mesmo isso ainda
subestima a diferença, já que os norte-americanos que receberam o dinheiro de
modo geral tinham menos necessidade dele do que as pessoas mais pobres do
mundo.
Na Cúpula do Milênio, organizada pelas Nações Unidas em setembro de 2000,
em Nova York , os países da comunidade internacional se comprometeram com
uma série de objetivos, destacando-se entre eles a diminuição pela metade no
número de pessoas vivendo na pobreza, até 2015. O Banco Mundial estimou que,
para atingir esses objetivos, precisaria de um adicional de US$ 40 a US$ 60 bilhões por ano. Até agora o dinheiro não tem aparecido.
Embora descritos como "ambiciosos", os objetivos da conferência são modestos, pois, para reduzir à metade o número de pessoas vivendo em pobreza, é necessário apenas -ao longo de 15 anos-
atingir a metade em melhor situação das
pessoas mais pobres do mundo e movê-las marginalmente acima da linha de pobreza. Isso poderia, em teoria, deixar os
500 milhões de pessoas pobres em pior
situação hoje -uma pobreza tão horrenda quanto aquela que experimentam
atualmente. Além do mais, durante cada
dia desses 15 anos, milhares de crianças
morrerão de causas relacionadas à pobreza. Quanto seria necessário, por pessoa, para levantar os necessários US$ 40
a US$ 60 bilhões? Há cerca de 900 milhões de pessoas vivendo no mundo desenvolvido, 600 milhões delas adultas.
Uma doação de US$ 100 por adulto por
ano pelos próximos 15 anos poderia atingir os objetivos da Cúpula do Milênio.
Para alguém que recebe US$ 27.500 por
ano, o salário médio no mundo desenvolvido, isto equivale a menos de 0,4%
da renda anual -ou menos de um centavo de cada US$ 2 que se recebe.
É claro, nem todos os habitantes de
países ricos têm renda sobrando depois
de atingir suas necessidades básicas. Mas
há centenas de milhões de pessoas ricas
que vivem em países pobres, e elas também poderiam doar. Nós poderíamos,
portanto, advogar que todos aqueles
com renda disponível após atingir as necessidades básicas de suas famílias deveriam contribuir com um mínimo de
0,4% de sua renda para organizações que
trabalham para ajudar as pessoas mais
pobres do mundo, e isso provavelmente
seria o suficiente para atingir os objetivos
da conferência.
Uma figura simbólica mais útil do que
os 0,4% seria 1%, e isso, adicionado aos
níveis existentes de ajuda governamental
(o que em cada país do mundo, com exceção da Dinamarca, incide em menos
do que 1% do Produto Interno Bruto,
sendo que nos EUA é de apenas 0,1% dele), estaria mais perto do necessário para
eliminar, em vez de diminuir à metade, a
pobreza global.
Temos a tendência de pensar em caridade como algo que é "moralmente opcional" -bom que seja feita, mas não é
errado deixar de fazê-la. Enquanto a pessoa não mate, aleije, roube, traia etc., ela pode ser um cidadão moralmente virtuoso, mesmo que esbanje dinheiro e nada dê à caridade. Mas aqueles que têm o
suficiente para gastar em luxos e ainda
assim deixam de partilhar mesmo uma
ínfima fração de sua renda com os pobres devem ter alguma responsabilidade
pelas mortes que eles poderiam ter evitado. Aqueles que não chegam nem ao mínimo do 1% padrão deveriam ser vistos
como se estivessem fazendo algo moralmente errado.
Qualquer um que pense sobre suas
obrigações éticas decidirá corretamente
que -já que, não importa o que façamos, nem todos doarão mesmo 1%- ele
deverá fazer mais. Eu já advoguei, no
passado, a doação de somas bem maiores. Mas, se para mudar nossos padrões
de uma maneira que tenha uma chance
realista de sucesso e nos concentrarmos
naquilo que podemos esperar que todos
façam, há algo a ser dito sobre o estabelecimento da doação de 1% da renda anual
para superar a pobreza mundial como o
mínimo do mínimo que toda pessoa deve fazer para levar uma vida moralmente
decente. Doar essa quantia não requer
heroísmo moral. Deixar de doá-la mostra indiferença com relação à continuação da horrenda pobreza e das evitáveis mortes relacionadas a ela.
Peter Singer é professor de filosofia na Universidade Princeton (EUA) e autor de "Ética Prática" (ed. Martins Fontes), entre outros. Este texto tem
copyright do Project Syndicate.
Tradução de Victor Aiello Tsu.
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