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O TRABALHO DO ALFAIATE
CARICATURA DA FILOSOFIA ESPECULATIVA ALEMÃ, "A SAGRADA FAMÍLIA", DE MARX E ENGELS, QUE SAI
EM NOVA TRADUÇÃO, PERMITE REEXAMINAR A ESTÉTICA DO USUCAPIÃO NA LITERATURA BRASILEIRA
A caricatura evidencia a olho nu as impressões
digitais das idéias. A palavra "caricatura" está
nas primeiras linhas do "Prólogo" de "A Sagrada Família", de autoria de Friedrich Engels e
Karl Marx. Ali se diz que aquilo que os dois combatem
na "Crítica da Crítica" de Bruno Bauer (e dos seus consortes) "é a especulação, que se reproduz à maneira de
caricatura" (tanto um termo quanto o outro vêm grifados no original). Aclaram eles que a especulação filosófica representa a expressão mais acabada do princípio
cristão-germânico, que faz sua derradeira tentativa ao
transformar a crítica em si numa força transcendental.
A crítica marxista à "Crítica da Crítica" tanto mais
contundente será quanto melhor mostrar o modo como os neo-hegelianos estão reproduzindo equivocadamente as idéias progressistas na primeira metade do século 19. O próprio título do livro é uma caricatura da célebre cena a três, já que implica rebaixamento laico da
expressão religiosa consagrada pelos pintores.
Aprendamos com Louis Althusser, que, por sua vez,
aprendeu de Marx, que é preciso que o trabalho do alfaiate não desapareça na roupa. Numa outra passagem
de "Ler "O Capital'", diz: "Quando lemos Marx, de imediato estamos diante dum leitor, que diante de nós, e em
voz alta, lê".
A leitura dos filósofos alemães, proposta por Engels e
Marx em "A Sagrada Família", evidencia a olho nu, pelo
recurso à caricatura, as contrafações propostas pela filosofia especulativa, que, no debate das idéias, estavam
sendo consideradas como sérias contribuições ao conhecimento, alcançavam sucesso e se tornavam moda.
Faziam passar a moeda falsa por autêntica. A caricatura
cai-lhes como luva. Na especulação invertem-se os papéis da lógica reprodutora animal: o filho gera o próprio
pai, como escreve Engels, ao observar que Bruno Bauer
(1809-1882) e companheiros geram cidades fabris antes
de haver fábricas. Combate-se o falso, mostrando o absurdo do raciocínio cronológico que o sustenta.
Outro exemplo. Bauer é muito pior quando traduz o
pensador francês Proudhon (1809-1865) do que quando o glosa. Continuemos. Ao acreditarem que dão continuidade à filosofia hegeliana, os novos filósofos de então se assemelham, numa expressão politicamente incorreta, a uma mulher velha, uma prostituta decadente.
Nos escritos de Engels e Marx se lê: "A filosofia hegeliana emurchecida e enviuvada, que maquia e adorna
seu corpo ressequido a ponto de alcançar a abstração
mais asquerosa, olhando de soslaio por todos os cantos
em busca de um cliente". Só depois de se liberarem do
falso pela caricatura é que os dois poderão expor positivamente o próprio pensamento. Atenção. A caricatura
nem sempre aperta as mãos do bom gosto e do decoro,
embora deles aperte a mão na notável apresentação
gráfica do livro ["A Sagrada Família", ed. Boitempo,
tradução de Marcelo Backes, R$ 34,00].
Qualificar uma obra como caricata é dizer que a reprodução que quer se passar por séria é na verdade grotesca. Os neo-hegelianos são a (caricatura da) sagrada
família. Por meio da caricatura dos seus escritos também se faz a caricatura dos descendentes da sagrada família original. Caricaturar não deixa de ser o método de
leitura que Engels e Marx propõem para se aproximarem da bibliografia então à disposição. Geram um trabalho crítico semelhante ao proposto por Nietzsche em
"A Genealogia da Moral", quando derruba "Da Origem
dos Sentimentos Morais", de Paul Rée, e glosa os diálogos platônicos. Ou ao proposto por Jacques Derrida sob
a denominação de "desconstrução" do logocentrismo
da metafísica ocidental.
Destes dois e por outro lado, a caricatura se distancia.
Em lugar de se apresentar num movimento único, dividido e complexo, organizado em diferença, o método
caricatural, alerta-nos o "Prólogo", "antepõe-se" aos escritos propriamente ditos de Engels e Marx, posteriores
espacialmente no livro. Nestes "exporão [sua] visão positiva, e com ela [sua] atitude positiva ante as novas
doutrinas filosóficas e sociais" (o grifo é nosso).
A caricatura como método de leitura é visceralmente
negativa, do contra. Apropria-se do objeto e dele faz tábula rasa ao afirmar que "converte a inversão da realidade [...] na mais plástica das comédias". O diferendo,
para usar este e outro neologismo de Derrida, é indecidível. Tanto negativo quanto positivo. Acata a lição platônica, por exemplo, para dela se distanciar. Busca elementos textuais que são diferendos, mostra como semanticamente são indecidíveis, com a finalidade de
desconstruir os verdadeiros conceitos que estruturaram histórica e canonicamente o edifício da metafísica.
O trabalho do alfaiate pode nos mostrar (ainda que no
presente caso superficialmente) o solo onde se ergue a
crítica à dialética na "genealogia" de Nietzsche (vide Gilles Deleuze) e nos desconstrucionistas.
Descontinuidade e ruptura
A caricatura propõe
a descontinuidade e, nos instantes radicais, a ruptura
com o equívoco ou a falsidade do passado (representado no caso pela bibliografia em análise). Destrói-se o
oponente pelo sarcasmo. No século 20 e em termos de
estética literária, a arte dadá e parte do modernismo
brasileiro são legítimos herdeiros desses métodos.
Seria possível dizer que o método de leitura proposto
por "A Sagrada Família" se enquadra dentro dos postulados da "leitura sintomal", desenvolvida por Louis Althusser e Etienne Balibar no já citado "Ler "O Capital'"?
Seria o objeto de "A Sagrada Família" tão insignificante
que ele só poderia ser tratado derrisoriamente, sob a
forma de caricatura? A primeira pergunta terá resposta
negativa (até no próprio livro, leia-se o "Epílogo Histórico"), e, a segunda, positiva.
Desentranhada de "O Capital", a leitura sintomal de
Marx efetua-se em transparência, como, aliás, a leitura
que dele faz Althusser. Citemos a este: Marx "lê Quesnay, lê Smith, lê Ricardo etc. Ele os lê de uma maneira
que parece perfeitamente límpida: para se apoiar no
que disseram de exato, e para criticar o que disseram de
falso -em suma, para se situar em relação aos mestres
reconhecidos da economia política".
Tão insignificante é o objeto direto de "A Sagrada Família" que, num incomparável "close reading", Marx
consegue retirar Proudhon das garras de Edgar Bauer
(1820-1886) para levá-lo até a luz das suas considerações
positivas sobre a propriedade privada, valendo-se -aí,
sim- de leitura idêntica à levantada e descrita por Althusser. Marx opõe o Proudhon crítico (isto é, o dos
neo-hegelianos) ao Proudhon real (isto é, livre das deturpações efetuadas por Edgar Bauer) para afirmar que
"ele levou a sério a aparência humana das relações econômico-políticas e confrontou-as abruptamente com
sua realidade desumana". Isso porque "submete a base
da economia política, a propriedade privada, a uma
análise crítica e, seja dito, à primeira análise decisiva da
verdade, implacável e ao mesmo tempo científica".
Em parêntese e para o leitor brasileiro interessado por
literatura de vanguarda, acrescente-se que as páginas
sobre Proudhon, se transpostas para a questão dos "direitos de propriedade" do autor, poderão ter um interesse extra. Seriam úteis para reexaminar a estética do
usucapião, desenvolvida por Oswald de Andrade, em
"Esquema ao Tristão de Athayde" ("Revista de Antropofagia", 9, 1928), ou a célebre carta de Mário de Andrade a Raimundo de Morais (20-9-1931), sobre a gênese de
"Macunaíma". A posse contra a propriedade.
Voltemos. Das garras de um consorte dos irmãos
Bauer, Szeliga (1816-1900), Marx vai retirar em seguida
o célebre folhetim "Os Mistérios de Paris", de Eugène
Sue. O ponto de partida é brutal, como acontece em caricatura, em que se parte do bigode desgrenhado de
Marx ou do nariz do general De Gaulle para se reproduzir o rosto. Szeliga "concebe todos os estados atuais do
mundo como mistérios". Tendo conseguido transformar "trivialidades em mistérios", "sua arte não consiste
em desvendar o oculto, mas em ocultar aquilo que já se
encontra desvendado". Com a ajuda de Eugène Sue e de
dedo em riste, Marx desanca os "mistérios" da filosofia
especulativa.
Fruta abstrata
Vale a pena citar curtas passagens
sobre a impossibilidade de chegar à realidade pelas vias
da representação abstrata, palavras que deviam ser suplementadas pela discussão sobre a linguagem como
metáfora do real, em Nietzsche (ver "O Livro do Filósofo" e a leitura que dele faz Sarah Kofman): "E tudo que
há de fácil no ato de chegar, partindo das frutas reais para chegar à representação abstrata "a fruta", há de difícil
no ato de engendrar, partindo da representação abstrata "a fruta", as frutas reais. Chega a ser impossível [...]
chegar ao contrário da abstração ao se partir de uma
abstração, quando não desisto dessa abstração. [...] O
que alegra na especulação é [...] voltar a encontrar todas
as frutas reais, porém na condição de frutas dotadas de
uma significação mística mais alta...".
Não cabe, no espaço de uma resenha, acompanhar o
intrincado raciocínio de Marx e as sutis interpretações
do texto folhetinesco, nobilitando personagens "degradados" para a história e elevando o "popularesco" para
a alta cultura. Para me valer de palavras do texto, num
gesto que desconcertará os nacionalistas de plantão, as
relações entre o degradado e o nobre, entre o baixo e o
alto, não são mais "ingênuas na Inglaterra e na França".
Pelo menos para os que hoje se distanciam do radicalismo oitocentista das "belles lettres" e se adentram pela
crítica cultural. Cabe, isso sim, alertar para o fato de que
é a partir desse capítulo de "A Sagrada Família" e de resenhas subsequentes de livros sobre a "boêmia" parisiense, assinadas pelos dois autores, que Walter Benjamin vai articular a sua célebre leitura da poesia de Baudelaire, a de um poeta lírico no apogeu do capitalismo.
Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico literário, autor de, entre
outros, "Stella Manhattan" e "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco).
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